
No ano passado visitei o Oriente Médio. Saí de lá com a impressão de que todos os meus parâmetros estavam errados. Ou melhor, incompletos. Tinha uma parte enorme do pensamento e da cultura mundiais que eu simplesmente desconhecia dentro da minha vida de ocidental que foi para a Disney aos 15 anos.
Entre os lugares que passei estava um campo de refugiados palestinos na Jordânia. Sinto não ter tido tempo de conhecer melhor a realidade desse povo, assim como visitar Jerusalém e outros sítios históricos. De qualquer forma, em um dia tão triste como este, em que mais de 300 pessoas já morreram com os ataques à Faixa de Gaza, decidi republicar a matéria que fiz naquela época. (E fugir um pouco do assunto desse blog).
Talvez ajude a compreender qual é a realidade de milhares de palestinos que sofreram e sofrem com uma situação sem qualquer saída aparente. Em tempo: nessa breve passagem também conheci israelenses que tiveram suas vidas traumatizadas pelo confronto. Sem dúvida, as vítimas estão em ambos os lados, mas em proporções muito diferentes – 1 israelense para cerca de 150 palestinos.
A Palestina é aqui
Ruas estreitas, mal pavimentadas e repletas de poças d’água de chuvas recentes. Algumas crianças brincam entre as casas de alvenaria. Uma das fachadas traz a pichação “aluga-se”. O risco em cima da palavra indica que, provavelmente, um novo locatário já se mudou. Na quadra seguinte, uma pequena loja de eletrodomésticos usados e uma barbearia, com duas cadeiras e apenas um cliente. A feira, bem no início do bairro, movimenta a população. Está lotada, em pleno horário comercial. Cordeiros e cabritos sem pele ficam expostos, pendurados pelas patas traseiras. Legumes, verduras e temperos também são vendidos com pouca ou nenhuma higiene. A apenas alguns metros do início das barracas, um pequeno e fumaçento terminal de ônibus.
O cenário acima poderia ser São Paulo ou Recife. Mas está em pleno Oriente Médio, na Jordânia. Os personagens, descritos por meu olhar ocidental, são refugiados palestinos que vivem no local desde 1968, expulsos de suas terras originais pela invasão israelense. Baqa’a era um dos seis acampamentos de emergência armados para acomodar os desterrados e já em seu início abrigava uma população impressionante: 26 mil refugiados em cinco mil tendas. A área não chegava a 1,5 quilômetro.
Hoje, cerca de 90 mil pessoas vivem neste campo. Com o crescimento de Amã, o Baqa’a tornou-se um bairro ao norte da capital. Porém, diferente de outras regiões no entorno, não é possível entrar sem autorização prévia do governo da Jordânia. Assim como nos morros cariocas controlados pelo tráfico, a circulação é restrita.
Clandestina, ingressei na realidade daquele lugar. A primeira oferta que tive para conhecê-lo restringia-se a um rápido passeio de carro, com vidros e portas fechados. A segunda, gentilmente colocada por um professor universitário palestino, apresentava a possibilidade de alguma interação com os moradores. De qualquer forma, máquinas fotográficas e gravadores estavam proibidos. Todo o registro seria feito com poucas folhas de anotação, uma caneta e a memória.
Em minha imaginação, aquele seria um local improvisado. Porém, ainda do lado de fora, percebi que a realidade era outra: de temporário, o campo passou a permanente. Os palestinos já não vivem em tendas. Os invernos rigorosos e algumas contribuições do governo da Alemanha colaboraram para que elas fossem abandonadas entre 1969 e 1971, após a instalação de 8 mil abrigos pré-fabricados. As casas de alvenaria vieram a seguir, procurando acomodar a população, que aumentava com mais velocidade que o espaço designado. Segundo as Nações Unidas, a média de membros, por família, entre os refugiados palestinos na Jordânia, varia de 4 a 7 pessoas.
Poucos minutos depois dos primeiros passos, um homem abordou o professor e questionou o que fazíamos – eu e outros três estrangeiros, dois deles jornalistas – em Baqa’a. A resposta dada, “são meus alunos”, como traduziria depois nosso anfitrião, não foi satisfatória e, em seguida, aquele que se idenficara como autoridade local voltou, com mais dois homens. Com certo distanciamento, eles acompanharam os movimentos de nossa incursão.
Sob pressão, caminhei pelo campo sem trocar uma palavra, apenas observando as dezenas de histórias não contadas de um povo milenar, cuja trajetória é, por si só, a da própria humanidade. A frustração era imensa, e continua sendo. Não segui minhas expectativas de construir uma grande reportagem e nem me arrisquei a ouvir os que seriam minhas fontes. Caminhei, parte do tempo sob chuva.
No muro ao lado da mesquita, uma pichação em apoio ao grupo Hamas, vitorioso na última eleição. Desde 2001, as manifestações políticas são proibidas na Jordânia. Na ocasião, o governo alegou que houve “uma generalização da violência” nas mobilizações. Mesmo assim, os protestos continuam. Em 2002, o campo foi cercado e invadido por tanques do exército. Ninguém podia entrar ou sair, configurando um verdadeiro estado de sítio.
Pelas ruas principais, a circulação era intensa. A explicação pode estar no alto índice de desemprego entre os moradores do campo, que beira os 70%. Quem consegue melhorar sua condição de vida, explica o professor, rapidamente se muda para um bairro com mais infra-estrutura.
Dentro de Baqa’a, as casas são apertadas: cada uma têm um ou dois cômodos de 12 m², dependendo do tamanho da família. Conforme aumentam os membros, pode-se ampliar o local, mas sem ultrapassar 100 m², o que apresenta uma perspectiva bastante limitada para a terceira geração de refugiados em desenvolvimento.
O motivo para tanta intolerância a visitas começava a se desenhar para mim. Apesar da ajuda humanitária da ONU, que construiu e mantém escolas e centros de saúde para os refugiados, eu me enganei na impressão inicial. O campo é, de fato, provisório. Desemprego, repressão, confinamento e distância de sua terra natal não são formas permantes de vida.
Provavelmente algumas daquelas pessoas que cruzaram meu caminho tiveram suas famílias dilaceradas pelo conflito. Não reencontraram mais o irmão, a mãe ou o primo porque o rígido controle fronteiriço israelense não permite. Outras desejaram estar na segunda intifada ou no enterro de Yasser Arafat. Como saber?
Hoje, os palestinos se espalham pelo país: são 1 milhão e 835 mil registrados pelos critérios da ONU – aqueles que viviam na Palestina entre junho de 1946 e maio de 1948 e seus descendentes. Somados aos que estão nos vizinhos Síria e Líbano e nas regiões da Faixa de Gaza e da Cisjordânia são 4,3 milhões de refugiados. Nos útimos três anos, o país começou a receber exilados de outro conflito, a guerra do Iraque. Mais de 2,5 milhões de pessoas já atravessaram a fronteira com a Jordânia para fugir da violência crescente.
Em comum, estes dois povos dividem o sentimento de estar longe de uma vida que era sua. Aos palestinos, esta memória é mais distante. Para os iraquianos, nem tanto. Em minha breve passagem por Amã conheci um morador de Bagdá que migrou para Damasco. “Como está a situação por lá?”, indaguei. Seu rosto se transformou em segundos. Nos olhos, uma tristeza tão profunda que até agora enche os meus de água. Com uma expressão distante, respondeu que estava muito difícil. “Minha casa, meus amigos, tudo ficou para trás”. Talvez este seja o mesmo sentimento daqueles com quem não pude conversar.
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O “prêmio” israelense para um jornalista palestino
Enviado em 22 de Setembro de 2008
Publicado por Arturo Hartmann
Mohammed Omer é jornalista. Estava me correspondendo com ele através de email há algum tempo, desde maio. Foram poucos. O contato era parte do projeto que desenvolvemos no PortalPalestina. Enviei o primeiro contato no dia 6 de maio, às 16:48. Apresentei-me e expliquei como havia conseguido seu contato, através do site que mantém. Ele toca o site RafahToday, com informações a respeito da Faixa de Gaza, região afetada de forma mais dramática pela ocupação militar israelense.
Omer respondeu no mesmo dia, às 18:08, horário de Brasília, já tarde da noite na Palestina. Segue trecho: “Querido Arturo, Muito obrigado pelo seu trabalho duro e por tudo que está fazendo! De qualquer forma, diga-me como posso ajudá-lo. … Você está autorizado a usar materiais do meu website. AMO SEU POVO! Sinta-se à vontade em me contar a qualquer momento. Mohammed”.
Respondi a mensagem apenas uma semana depois, no dia 14 de maio. Expliquei o projeto e as necessidades que tínhamos de informações vindas diretas da Palestina. Desde então, não tive mais notícias. Em uma das reuniões da equipe do PortalPalestina, apontei certa preocupação. Mas foi logo dispersa pelo conhecimento da falta de infra-estrutura dos diversos serviços em Gaza, inclusive a Internet. Talvez apenas não tivesse recebido o email ou então o teria perdido após muitos dias sem acessar seu correio. Talvez nada tivesse acontecido.
Semana passada, 17 de setembro, às 5:51, recebi sua resposta: “Desculpe por minha resposta tão tardia querido Arturo. Espero que você esteja bem e esteja se cuidando. Eu terei que passar por uma operação em breve. Por favor, veja o que aconteceu comigo. Mohammed”.
Na mensagem, ele me passou um link, que me jogava para uma matéria do jornalista John Pilger, do The Guardian.
Em resumo, o que aconteceu a Omer: ganhou o prêmio Martha GellHorn de jornalismo, que recebeu no final de junho em cerimônia ocorrida em Londres. Levou como parte do prêmio 5000 euros. Na volta à Palestina, no momento em que passava pela ponte Allenby (que separa Cisjordânia e Jordânia), foi parado pelo ShinBet, órgão de segurança israelense, “infame” nas palavras de Pilger. Omer pediu para ligar para o oficial da embaixada holandesa responsável por sua saída e volta à Palestina. Não deixaram. Começaram a revistar sua bagagem. Diálogo (Edward Said estava certo, a palavra perdeu todo seu significado), começando pelo agente israelense:
– Onde está o dinheiro? Onde está o pound inglês que você tem?
– Não está comigo.
– Você está mentindo.
Omer percebeu que queriam o dinheiro do prêmio que havia ganho. Oito oficiais armados, então, o cercaram. O jornalista já havia passado por uma máquina de raio-X e estava só de cuecas. O oficial ‘Avi’ pediu que tirasse toda a roupa. Omer recusou-se. O israelense colocou a mão na arma. Novo diálogo, agora começando por Omer gritando:
– Por que você está me tratando assim? Sou um ser humano.
– Isso não é nada comparado ao que você verá agora.
O soldado pegou a arma, pressionou contra sua cabeça e com todo o peso do seu corpo imobilizou-o de lado. Arrancou sua roupa de baixo. “Ele então me fez fazer uma dança. Um dos soldados ria”, disse a Pilger.
– Por que está trazendo perfumes?
– São presentes para as pessoas que amo.
– Ah, você tem amor na sua cultura?
O que os soldados mais gostavam de fazer era tirar sarro das cartas que Omer havia recebido na Inglaterra. O jornalista relata a Pilger: “Eu estava sem comida e água havia 12 horas, e tendo sido feito ficar de pé, minhas pernas fraquejaram, dobraram. Vomitei e desmaiei. Tudo que me lembro é um deles enfiando, raspando e agarrando com suas unhas a parte sensível do músculo abaixo de meus olhos. Ele pegava minha cabeça e enterrava seus dedos próximo aos nervos da audição, entre minha cabeça e meu tímpano. A dor tornou-se mais aguda enquanto ele colocava dois dedos por vez. O outro homem tinha sua bota de combate no meu pescoço, pressionando no chão duro. Deitei lá por mais de uma hora. A sala tornou-se uma mistura de dor, sons e terror”.
Pilger informa que ima ambulância foi chamada, mas Mohammed só seria liberado se o médico palestino assinasse um compromisso isentando os oficiais israelenses do sofrimento durante sua custódia. O médico recusou e disse que contataria o acompanhante oficial holandês. Os soldados se assustaram e deixaram a ambulância partir. A resposta israelense, publicada na Reuters, seguiu a linha de que o jornalista era “suspeito” de contrabando e “perdeu a compostura” durante um “justo” interrogatório.
Em artigo publicado no The Nation, no final de julho, o próprio jornalista relata a experiência violenta pela qual passou.
“Fui desnudado com uma arma apontada, interrogado, chutado e batido por mais de quatro horas. Em certo momento, desmaiei e acordei com unhas pressionando o músculo abaixo dos meus olhos. Um oficial apertou meu pescoço com sua bota e pressionou meu peito contra o chão. Outros faziam rodadas chutando, rindo o tempo todo. Arrastaram-me pelos pés, passando minha cabeça pelo meu próprio vômito. Perdi consciência. Disseram-me depois que eles me transferiram a um hospital somente quando acharam que eu podia morrer. Hoje, tenho dificuldades de respirar. Tenho cicatrizes e marcas no meu peito e pescoço. Minhas mãos não funcionam bem; digitar é difícil. Meu médico informou que, devido a dano no nervo por causa de um chute, posso ficar impossibilitado de ter filhos e terei que fazer uma operação”. Escreveu isso no final de julho.
Está desculpado, Mohammed. Está desculpado.