Uma voz rara: uma entrevista com o autor Ilan Pappe [artigo traduzido] By Rafael Fortes

Um tênue cessar-fogo é mantido na Faixa de Gaza após quase cinco meses de uma pesada dose de “Operação Chuva de Verão” do exército de Israel. As chuvas...

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Um tênue cessar-fogo é mantido na Faixa de Gaza após quase cinco meses de uma pesada dose de “Operação Chuva de Verão” do exército de Israel.

As chuvas de mísseis, bombardeios aéreos, incursões militares em áreas populosas ao longo dos cinco meses da tempestade de “chuva” deixaram mortas mais de 457 pessoas, um quarto delas crianças, e bem mais de 1.000 feridos.

Desde que as chuvas de verão começaram, muitos partidários da paz em Israel permaneceram em silêncio a respeito da crise em andamento em Gaza e na Cisjordânia. Entretanto, uma voz permanece constante nos círculos israelenses e continua a se manifestar, apesar da oposição. Ilan Pappe é professor de história na Universidade de Haifa. Ele escreveu numerosos artigos sobre o conflito Israel-Palestina e tem aberta e continuamente clamado por boicotes acadêmicos e culturais a Israel.

Esses pronunciamentos fizeram do professor Pappe un enfant terrible[NT: uso a expressão em francês, existente no Aurélio, à falta de termo melhor para traduzir o termo original, scion] aos olhos do governo e do público israelenses, mas ele segue em frente na esperança de reconciliação e justiça para os palestinos. Sua mais recente contribuição é o novo livro The Ethnic Cleansing of Palestine [A limpeza étnica da Palestina].

Christopher Brown, colaborador da EI [Intifada Eletrônica, na sigla em inglês] falou recentemente ao telefone com o professor Pappe sobre a situação atual em Israel/Palestina.

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Christopher Brown: Ehud Olmert recentemente indicou Avigdor Lieberman como vice-primeiro-ministro – um homem que alguns consideram um “fascista”, à luz de suas visões a respeito dos árabes, e palestinos em particular. Contudo, a imprensa mundial praticamente nada disse sobre seu discurso violento; por exemplo, que todos os árabes deveriam ser expulsos dos territórios [palestinos ocupados], e membros árabes do Knesset [parlamento israelense] deveriam ser executados por terem qualquer contato com o movimento liderado pelo Hamas. Entrementes, Mahmoud Ahmadinejad, presidente do Irã, tem cada palavra gravada para todos ouvirem, a respeito de o Holocausto ter sido um embuste, a destruição de Israel e afins. Sua resposta?

Ilan Pappe: Penso que você apontou duas questões muito importantes. A primeira é a ideologia que Avigdor Lieberman subscreve, que é a ideologia de limpeza étnica. Alguém que acredita que a única forma de resolver os problemas em Israel/Palestina é expulsar os palestinos de Israel e de qualquer território que Israel deseje.

Penso que o problema com Avigdor Lieberman não são suas próprias visões, mas o fato de que ele reflete o que a maior parte dos judeus de Israel pensam, e definitivamente o que a maioria de seus colegas no governo Olmert pensam mas não têm a coragem de dizer, ou não acham desejável dizer por razões táticas. Mas penso que deveríamos nos preocupar com Lieberman não como um extremista fascista, mas como uma pessoa que representa a disposição de Israel em 2006.

O segundo ponto é o critério duplo, a hipocrisia que você apontou quando comparou corretamente as declarações de Ahmadinejad sendo repetidas e palavras similares – generalizações e posturas piores por parte dos israelenses não sendo ouvidas. Penso que a explicação tem a ver com o lugar bastante peculiar que Israel ocupa no mundo ocidental. [Embora] não aos olhos da sociedade civil… Para a maioria das pessoas que vivem hoje no ocidente, [Israel] é um país que viola direitos humanos, direitos civis, e tanto sua ideologia quanto suas políticas são inaceitáveis. Mas os governos ainda incentivam bastante o estado [de Israel] porque o mundo é liderado por um presidente estadunidense e um grupo de pessoas que tem um certo ponto de vista, um ponto de vista quase religioso, no qual idéias como as de Lieberman se encaixam bem.

Não há muita diferença entre o programa político de Israel e o programa político dos EUA no Iraque. E penso que enquanto os EUA forem uma superpotência no mundo e Israel for seu aliado mais próximo, continuaremos assistindo a essa postura desigual nas atitudes dos governos e da mídia gorda [NT: mainstream media no original].

CB: Sessenta e um acadêmicos irlandeses escreveram uma carta aberta em setembro, apelando por uma moratória na ajuda da União Européia às universidades israelenses até Israel aceitar as leis internacionais e as normas básicas de direitos humanos. Além disso, um sindicato de professores canadenses clamou por boicotes acadêmicos. É essa uma forma efetiva de pressionar o governo de Israel a tratar a ocupação de uma forma que traga algo próximo a justiça para os palestinos?

IP: É uma forma efetiva, se não for apenas um boicote acadêmico. Um boicote acadêmico é um componente importante no que alguém pode chamar um boicote cultural de Israel, porque seria muito duro nesse mundo globalizado em que vivemos trazer sanções econômicas, as quais seriam as mais efetivas ao forçar uma mudança na orientação política israelense.

A segunda melhor, e mais factível, [forma] é mandar a Israel uma mensagem das sociedades como um todo de que suas políticas são inaceitáveis, que enquanto continuar a fazer o que faz ele não pode ser aceito. Não pode ser [aceito] na comunidade de nações civilizadas.

Penso que há tanto um significado simbólico quanto um bastante político para a reação coordenada de sociedades no ocidente para uma mensagem, uma mensagem clara, que é propagada tanto na forma de um boicote de desinvestimento ou qualquer outro ato simbólico que diga que há um preço colado a qualquer política que você adote e que, enquanto você adotar tais políticas, não é bem-vindo aqui. Não como indivíduos – você não é bem-vindo aqui se você representa uma certa ideologia, um certo estado, e especialmente se você aparece como um representante oficial desse estado. Não estamos inventando a roda, é óbvio. O boicote cultural foi um componente importantíssimo na ação contra o apartheid na África do Sul. Foi bastante eficaz e útil, segundo as pessoas que lá viveram.

O mais importante é lembrar sobre ações desse tipo é que elas são não-violentas. Alguém precisa mostrar aos palestinos, e os palestinos precisam descobrir por si mesmos, que há possibilidades não-violentas de esforçar-se para acabar com a ocupação de Israel. Porque se elas são não-violentas, quem poderia culpar os palestinos por usarem cada forma desesperada a seu alcance para tentar parar uma das mais cruéis e opressoras ocupações em tempos modernos?

CB: E sobre esses [como os que fazem lobby para Israel] que diriam que propor um boicote cultural ou acadêmico é alimentar o anti-semitismo? Como você responde a isso?

IP: Três pontos são importantes nessa conexão. O primeiro deveria realçar o fato de que muitos judeus progressistas e liberais, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, estão envolvidos nas ações de boicote cultural. De fato, em nome de sua identidade judia, herança, sua compreensão de valores judeus, eles ficaram ao lado dos que protestaram contra as violações dos direitos humanos nos Estados Unidos, na América do Sul, na África do Sul, no Sudeste Asiático – eles não vêem diferença quando se trata de Israel-Palestina. De fato, nesse caso, embora seja um estado judeu que viole direitos humanos, não muda a posição deles. Quem quer que seja o violador, resistirão contra ele.

O segundo [ponto] é, os israelenses estão exagerando o uso da acusação anti-semita contra qualquer um que os critique. Não apenas [contra] os que clamam por um boicote, mas mesmo a mais razoável crítica de Israel é pintada aqui como um ato de anti-semitismo. Penso que com uma boa rede de educação, poder-se-ia disseminar as visões de que a tática de Israel tem pouco a ver com reais ou efetivadas irrupções de sentimentos anti-semitas, os quais efetivamente ainda prevalecem em algumas partes do mundo. Talvez um ou doisconhecidos anti-semitas tenham se juntado ao trem, mas isso não prova nada. O fato é que Israel deseja estar imune a qualquer crítica. E o escudo que usa é sempre o anti-semitismo.

Terceiro, e mais importante, dever-se-ia diferenciar sionismo e judaísmo. Hoje podemos ver, após 60 anos, as implementações da ideologia sionista no chão, a partir do ponto de vista palestino.

Essa ideologia pode ter feito algum bem aos judeus ao redor do mundo, mas é definitivamente algo que não permite aos palestinos viver em paz ou mesmo viver [de qualquer maneira] em sua terra natal, e isso é sionismo. Tem alguma conexão com judaísmo, mas não diz respeito ao judaísmo. Diz respeito a uma ideologia colonial que, no século 21, ainda é imputada a um estado que é um projeto não finalizado. O Estado de Israel não foi construído corretamente. Como vocês sabem, não temos sequer fronteiras definitivas.

Penso ser muito importante educar as pessoas para o fato de que não é com a questão judaica que estamos lidando; estamos lidando com uma certa relíquia do período colonial cuja continuidade ainda é permitida na situação pós-colonial. Enquanto continuar dessa forma, [ela] complica a relação entre o mundo ocidental e o mundo árabe e o mundo muçulmano.

CB: Em 7 de novembro, o Partido Democrata venceu eleições que o permitiram controlar o Congresso dos Estados Unidos. Os Democratas têm sido críticos das políticas de Bush a respeito da condução da guerra do Iraque. Mas o partido tem reiterado que a relação entre os EUA e Israel não mudará. Essa orientação política é o melhor caminho de ação entre as nações, menos entre os palestinos?

IP: Bem, os resultados das eleições intermediárias são boas notícias em muitos aspectos para o público estadunidense. Mas não penso que [as eleições] tragam qualquer boa notícia para esta parte do mundo. Em outras palavras, não acho que a mudança no equilíbrio de forças nas duas casas possa mudar a política estadunidense frente à Palestina. Pode mudar, e poderia mudar, claro, o programa de ação estadunidense no Iraque. Mas penso que o Partido Democrata está tão comprometido com a proteção de Israel à custa dos palestinos quando a administração republicana. Não acho que no futuro visível vejamos qualquer mudança fundamental na política estaduniense em relação a Israel.

Você pergunta se deveria. Claro que deveria. Deveria porque [o Partido Democrata] é leal à nova perspectiva que traz para a política estadunidense – a idéia de que os estadunidenses deveriam ter algumas inibições na atuação internacional, de que o uso da força no Iraque estava errado, e que há um problema na imagem e reputação estadunidenses no mundo – se, de fato, essa é a mensagem dos democratas para a política estadunidense, então acho que eles deveriam prestar atenção ao fato de que a reputação e posição dos estadunidenses no mundo não é afetada apenas pela invasão do Iraque, mas também pelo apoio incondicional que os EUA dão a Israel à custa dos palestinos.

Penso que eles deveriam perceber que apenas mudando sua postura frente a Israel e tendo uma corretagem muito mais honesta no conflito podem realmente trazer mudanças construtivas na relação entre os EUA e o mundo árabe; o mundo muçulmano é, afinal, um quarto da população do mundo.

CB: Paz Agora (uma organização israelense pela paz) afirma que aproximadamente 40% das colônias, incluindo comunidades existentes há muito tempo, são construídas em terras particulares palestinas, e não em terras de propriedade do estado. Paz Agora recebeu essa informação de uma fonte do interior da administração civil, que queria expor as violações em larga escala dos direitos de propriedade dos palestinos pelo governo e pelos colonos. Você acredita que há mais [pessoas] no governo que discordam do tratamento dado aos palestinos e estão dispostas a se manifestar?

IP: Talvez haja mais, mas acredito que não é o suficiente. Esse tipo de crítica do Paz Agora sobre a informação que eles vazaram para nós é muito importante. Mas não se esqueça nunca que qualquer centímetro quadrado que tenha sido tomado por Israel é uma ocupação ilegal, não apenas os 40% que são terras particulares.

Pode ser uma violação mais dura, mas toda a presença de Israel é uma violação de direitos humanos e direitos civis. O que se precisa é muito mais que esse tipo de crítica. O problema em Israel é que entre Peace Now [e Avidgor] Lieberman, ao contrário do que andam dizendo, não há tanta distância ideológica assim. É uma questão tática de qual a melhor forma de garantir um estado judeu com uma vasta maioria demográfica.

Lieberman diz: vamos pegar qualquer território de que precisemos e alcançar esse objetivo diminuindo o número de árabes vivendo lá. Paz Agora diz: não, vamos pegar menos terra e diminuir a terra em vez da população e, assim, podemos ter o desejado estado de supremacia exclusiva. Ambas as posições são moral e politicamente erradas e inaceitáveis porque, ao fim do dia, você tem 20% a 30% de [população de Israel consistindo de] palestinos, mesmo no menor estado que o Paz Agora ambicione, e o Paz Agora não está disposto a vê-los como cidadãos iguais.

E as pessoas, mesmo no Paz Agora, iriam pôr a idéia de um estado judeu acima de qualquer outra falha, democrática ou liberal. Então penso que mesmo se eu encontrasse no governo ou na administração pessoas que querem um modo mais limpo de ocupação, uma ocupação mais legitimada, é claro que eu as saudaria. Mas estou avisando que já estivemos lá anteriormente. Essas pessoas estiveram no governo e elas não fizeram qualquer mudança porque a razão para o conflito em andamento entre Israel e Palestina não é porque Israel ocupa partes da Cisjordânia e de Gaza e não está disposto a devolvê-las. A razão para termos o conflito é a ideologia sionista. Isso é onde ele [o conflito] começa e onde termina. Enquanto a grande maioria dos judeus em Israel subscrever essa ideologia na sua interpretação atual, temo que não veremos paz e reconciliação chegando a esta terra.

CB: Por fim, IlanPappe, o que as pessoas que torcem pela segurança de israelenses e palestinos podem fazer?

IP: Bem, penso que todo mundo tem um papel a desempenhar, especialmente pessoas que se importam; tanto os que pertencem a Israel-Palestina ou se importam com Israel/Palestina. Penso que palestinos têm seu papel de resistência; as forças progressistas dentro de Israel continuam a tentar educar e mudar o ponto de vista de seus compatriotas.

Mas a sociedade fora tem que desempenhar o mesmo papel que o movimento antiapartheid desempenhou no Ocidente durante o vigor do apartheid. Precisamos de um lobby no interior do mundo ocidental – especialmente nos Estados Unidos, mas também na Europa. Esse [lobby] enviaria uma mensagem clara a Israel de que essas políticas e ideologias são inaceitáveis, especialmente se você quer ser parte do mundo democrático, e nós precisamos mudar nossa política, a natureza ideológica do estado, e ter uma sociedade muito mais democrática como base.

Israel precisa de uma chamada para despertar. Israelenses não sabem que isso é o que o mundo pensa a respeito deles e penso que sociedades civis ao redor do mundo podem ser o despertador para eles, e elas devem ser o despertador.

Christopher Brown é um jornalista popular vivendo em São Francisco, Califórnia. Ele tem um blog sobre a Palestina emwww.cbgonzo.blogspot.com.

[Entrevista originalmente publicada n’A Intifada Eletrônica. Tradução: Rafael Fortes]

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