
Israel: apartheid, limpeza étnica e fascismo
O artigo que Arlene Clemesha e eu enviamos à Folha de S. Paulo foi supercortado em função do espaço de que o jornal dispunha. Fizemos um corte drástico, mas os editores realizaram outros e algumas coisas deixaram de fazer sentido. O Muro do Apartheid, por exemplo, virou um simples “muro”, sem maiores explicações.
Leitores que notaram os cortes pediram que publicássemos o artigo original, na íntegra. Faço isso agora, para que todos saibam que as violações da entidade sionista aos direitos do povo palestino vão muito além do citado no artigo. Trata-se, efetivamente, de limpeza étnica e da ocupação total da Palestina histórica em nome de um “passado” inexistente, usado como justificativa para a expansão colonialista numa região rica em recursos energéticos (gás e petróleo). Aí vai o artigo.
Israel não respeita os direitos dos palestinos
Arlene Clemesha e Bernadette Siqueira Abrão
Em artigo recente à Folha de S. Paulo, o embaixador israelense teceu uma série de queixas contra o lento mas progressivo processo de denúncia de violações de direitos humanos, por parte de Israel, dentro do Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDH-ONU) e na própria Assembleia Geral da organização. Em ambas as instâncias, somos obrigadas a concordar que inúmeros relatórios e resoluções têm sido aprovados, denunciando a violação de direitos humanos por parte dos governos israelenses, seu desrespeito à lei humanitária internacional e seu descaso pelas resoluções da ONU.
É fato também — que para muitos causa espanto, mas não ao embaixador — que Israel seja o único país-membro das Nações Unidas sem fronteiras nacionais definidas. Sabemos o motivo: Israel ainda está no processo de expandi-las. Para isso tem criado, dia após dia, fatos consumados que aumentam ilegalmente seu território, como a construção de colônias judaicas nas terras palestinas (Cisjordânia e Faixa de Gaza) militarmente ocupadas desde 1967; de estradas exclusivas para ligar as colônias a Israel, pelas quais é proibido o tráfego de veículos palestinos (em seu próprio território!); a construção do chamado Muro do Apartheid, que anexou a Israel outros 10% das terras mais férteis da Cisjordânia. Tudo isso acompanhado do consumo abusivo do aquífero subterrâneo da Cisjordânia; da contaminação proposital de poços cavados pelos palestinos; da judaização de Jerusalém oriental, ilegalmente anexada por Israel (tanto é assim que nenhum país do mundo mantém embaixada em Jerusalém, optando por Tel Aviv); da destruição violenta de casas palestinas e da expulsão das famílias, a fim de confiscar suas terras e anexá-las a Israel; dos assassinatos dirigidos; do impedimento ao acesso, pela população palestina, à saúde e à educação.
Vale lembrar que a prática do apartheid por parte do regime de ocupação militar israelense foi denunciada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, e a limpeza étnica do povo palestino é constatada e documentada por intelectuais judeus como Ilan Pappe, Norman Filkenstein, Noam Chomsky e Leni Brenner.
A justificativa de Israel para seus atos criminosos e de desrespeito à lei humanitária internacional — zelar pela “segurança” de seus cidadãos, como afirma o embaixador — não se sustenta. A população palestina, desarmada e em situação de inferioridade diante do exército israelense, considerado um dos mais bem-equipados, treinados e violentos do planeta, não oferece riscos ao Estado de Israel. Quanto aos “mísseis” citados pelo embaixador, não passam de armas de fabricação caseira, que em todo o ano de 2009, por exemplo, causaram tantas mortes israelenses quanto palestinas, devido a acidentes no processo de fabricação. Em ambos os casos, por sorte, foram poucas as fatalidades. Mais importante é lembrar que tais “mísseis” foram usados, em situação de desespero, por um povo oprimido, sofrendo a mais longa ocupação militar da história moderna, submetido a bombardeios, incursões militares constantes, toque de recolher, postos de controle que impedem sua livre movimentação, além da fome e das condições indignas de vida, em consequência do embargo ilegal e criminoso mantido por Israel contra a Faixa de Gaza e a Cisjordânia.
Em mais um exemplo de descaso pela lei internacional, o Estado de Israel ignorou a resolução da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que concluiu em julho de 2004, após meses de estudos e discussões entre juristas internacionais renomados, que o Muro construído por Israel em território palestino ocupado, assim como o sistema que lhe dá sustentação, é ilegal e deve ser desmantelado. Na ausência de meios mais efetivos — como a aplicação de sanções –, que caberiam apenas ao Conselho de Segurança da ONU determinar, a CIJ tomou o cuidado de atrelar o cumprimento da Opinião Consultiva ao sistema internacional de normas e convenções, determinando que todo Estado signatário das Convenções de Genebra tem a obrigação de fazer com que seja implementada a sua decisão. Tomando o caso do Brasil, isso significa que estamos legalmente obrigados a não conceder nenhum tipo de apoio, econômico ou diplomático, ao sistema que permite a existência do Muro em territórios palestinos ilegalmente ocupados.
Além disso, o embaixador cita um prisioneiro israelense, omitindo o fato de que Israel mantém em seus presídios, segundo dados da organização israelense de direitos humanos B’Tselem, mais de 6.000 prisioneiros palestinos, dos quais uma imensa parcela está sob “prisão administrativa”, isto é, sem acusação formal, sem processo na justiça e sem direito de defesa. Entre esses prisioneiros, em flagrante ilegalidade e desafiando a legislação internacional, encontram-se centenas de crianças. É importante dizer que esses prisioneiros raramente veem seus familiares e vivem em condições sub-humanas, como provam relatos e documentos internacionais. Essas violações de direitos humanos praticadas pelo Estado de Israel, e muitas outras – como o abuso moral e sexual de crianças detidas pelas forças israelenses de ocupação da Palestina — estão de fato documentadas pelo CDH-ONU.
Queixa-se também o embaixador de que Israel estaria sendo alvo de injustiças por parte do Conselho de Direitos Humanos da ONU — do qual, devemos lembrar, Israel não é membro, assim como não é signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear, para dar apenas alguns exemplos de sua tentativa de se esquivar de todo e qualquer compromisso com a lei internacional — devido ao relatório elaborado pelo juiz de reputação impecável Richard Goldstone (por acaso, de origem judaica) sobre os crimes de guerra israelenses durante o covarde bombardeio que massacrou 1.397 pessoas na Faixa de Gaza, de 27 de dezembro de 2008 a 18 de janeiro de 2009 (dos quais 773 eram civis, incluindo 320 crianças e 109 mulheres). Além disso, o embaixador, seguindo as orientações de seu governo, ainda procura deturpar o caráter heroico da flotilha de ativistas humanitários de todo o mundo (incluindo uma mulher idosa, sobrevivente do holocausto nazista) que arriscaram suas vidas para quebrar o bloqueio ilegal e desumano a Gaza – um bloqueio qualificado pelo Relator Especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, Richard Falk, como uma forma de punição coletiva e portanto, segundo as Convenções de Genebra, um crime de guerra e possivelmente crime contra a humanidade.
O objetivo da flotilha era chamar a atenção do mundo para o problema? Certamente. Era e continuará sendo também uma provocação? Apenas se considerarmos o termo no sentido de um desafio aberto à humanidade, para que ela impeça a continuidade do cerco desumano a Gaza, onde 80% da população tenta sobreviver com menos de dois dólares ao dia, sofrendo má nutrição crônica, e onde crianças apresentam níveis alarmantes de estresse e graves distúrbios psicológicos causados pelas constantes bombas sonoras lançadas por Israel. O fato de o governo israelense qualificar o Hamas, que dirige politicamente Gaza, de “terrorista” – aqui, é necessário lembrar que o grupo foi formado para resistir à ocupação sionista e ao tratamento desumano que o governo de Israel dá aos palestinos — não torna menos criminosa a transformação da faixa costeira em uma imensa prisão a céu aberto.
O mesmo governo israelense, cujos porta-vozes tanto se queixam do Conselho de Direitos Humanos da ONU, aprovou, justamente no dia do estranho artigo do embaixador, projeto de lei que, se passar pelo parlamento, exigirá de todo não judeu de Israel um juramento de “lealdade ao caráter judeu do Estado”. No mínimo 20% da população de Israel, que tem origem árabe palestina, será posta diante do dilema: aceitar o caráter exclusivamente judeu do Estado ou emigrar, aumentando o número de refugiados, que já ultrapassa a casa dos 7 milhões (dado de 2003). De todas as maneiras, a medida é mais uma forma de limpeza étnica, para criar, por meios “legais”, um estado étnico-racial judeu. O mesmo foi posto à ANP nas negociações que se tentam retomar, ou seja, que aceite não apenas a expansão continuada das fronteiras de Israel, através da construção incessante de colônias judaicas, como também reconheça por escrito o caráter judeu do Estado. As consequências disso, para a Palestina e para o mundo, não valem um debate no Conselho de Direitos Humanos da ONU?
Arlene Clemesha, professora de História Árabe na USP e diretora do Centro de Estudos Árabes (DLO-FFLCH/USP), é representante da sociedade civil do Brasil no Comitê da ONU pelos Direitos do Povo Palestino (UN-INCP).
Bernadette Siqueira Abrão, jornalista, formada em Filosofia (FFLCH/USP), é pesquisadora da questão palestina, ativista de direitos humanos e autora, entre outros livros, de História da Filosofia (editora Moderna).