Said, um palestino do mundo

Quando a então primeira-ministra de Israel, Golda Meir, declarou que ”é como se não houvesse um povo palestino… eles não existiram”, Edward Said decidiu aceitar o desafio colocado...

205 0
205 0

Quando a então primeira-ministra de Israel, Golda Meir, declarou que ”é como se não houvesse um povo palestino… eles não existiram”, Edward Said decidiu aceitar o desafio colocado por ela, tratando de ”articular uma história das perdas e das desapropriações, que tem que ser reconstruída, minuto a minuto, palavra por palavra, metro por metro”. ”A Palestina é uma causa ingrata… Só se recebe, como retorno, opróbrio, abuso e ostracismo”.

Ele foi perseguido por suas opções, chamado de ”professor do terror”, a Liga de Defesa dos Judeus xingou-o de nazista. Seu escritório na Universidade de Columbia, em Nova York, foi incendiado, ele e seus familiares foram objeto de inúmeras ameaças de morte. ”Acho que o que eles querem é o meu silêncio. Mas até minha morte isso não vai acontecer.”

Pude conhecer Edward Said há 10 anos, em Columbia, quando ele começava seu combate de resistência à leucemia que o levaria a morrer esta semana. Sua obra começava a ser publicada no Brasil, pelo seu livro mais importante, Orientalismo, que mudaria o panorama dos estudos culturais, ideológicos e políticos sobre a natureza do eurocentrismo. Reconhecido pela revista Time como grande personalidade internacional, pela sua obra, pelo seu desempenho político como dirigente palestino, como concertista de piano e como cronista de música clássica e de ópera da revista The Nation, Said pôde projetar uma cara desconhecida do mundo palestino e da sua cultura.

Como humanista, a solução que ele defendeu para o conflito entre palestinos e judeus é a do Estado binacional, porque os dois povos já estão irremediavelmente vinculados do ponto de vista demográfico, porque grande quantidade de palestinos trabalha em Israel, convivendo no mesmo espaço, com uma nova geração de palestinos que já são cidadãos israelitas, ainda que cidadãos de segunda classe. Embora possa parecer utópico pelo que sucede agora, Said acreditava que uma solução só pode ser obtida em base que permita a convivência solidária. É essa esperança e esse sentimento que o levaram a privilegiar como seu preferido o poema do haitiano Aimé Cesaire: ”E nenhuma raça possui o monopólio da beleza,/ da inteligência, da força,/ e há lugar para todos/ no encontro da vitória”.

Em Cultura e Imperialismo, Said aprofundou a idéia original de Orientalismo (ambos publicados pela Companhia das Letras), segundo a qual o Oriente não existe como tal, foi uma invenção do Ocidente para amalgamar tudo o que esteja além de suas fronteiras, tudo o que não seja ocidental, todos os seus outros, desqualificados como orientais, uma idéia que cruza a literatura e o cinema, marcando a cultura ocidental com sua marca racista.

Na organização de um livro com alguns de seus principais textos sobre a questão palestina, no plano político e cultural – Cultura e Política (Boitempo Editorial) -, pude retomar contato com Said e convidá-lo para vir ao II Fórum Social Mundial e posteriormente ao III, realizado este ano. Ao desculpar-se por estar num entra e sai dos hospitais e não poder vir, me escreveu: ”Algum dia, antes que eu morra, sinto que preciso visitar o Brasil”.

Sua fisionomia foi revelando, com o passar do tempo, as marcas do duro e cruel tratamento, mas a sua capacidade de trabalho se manteve no limite do heroísmo. Seu último artigo político foi publicado no Al Ahram da semana de 21 a 27 de agosto. O último artigo dele que pude ler foi publicado em The Nation da semana de 1 a 8 de setembro, uma resenha de três livros sobre a última fase da obra de Beethoven, cuja soma chega a mais de 1.200 páginas.

No Brasil será publicada proximamente sua autobiografia (Companhia das Letras), intitulada Fora de lugar, e seu último livro sairá em seguida, um estudo sobre Freud e o não europeu (Boitempo Editorial).

Seu último artigo político se chama Sonhos e desilusões e termina com um forte apelo a que não se aceite a apropriação de termos como ”democracia” e ”civilização” por parte do liberal imperialismo norte-americano e reafirmando que um mundo de solidariedade, dirigido pelos valores do humanismo, é sempre possível. É um combate que vale a pena e ao qual Said entregou o melhor de si, até seus últimos momentos de vida, constituindo-se num dos maiores intelectuais contemporâneos, sem que se tenha conseguido calá-lo, até porque suas idéias sobreviverão duradouramente à sua morte.

In this article

Join the Conversation