
Para uma geografia de paz: qual o rumo de Gaza?
Em Rafá, sul da Faixa de Gaza, homem sentado próximo a um muro onde se lê, em árabe, “Não à luta interna. Sim à luta contra a ocupação”. 16 de junho de 2007. (Hatem Omar/MaanImages)
A Faixa de Gaza é um pouco mais de 2% da Palestina. Esse pequeno detalhe nunca é mencionado quando a Faixa está no noticiário, nem tem sido mencionado na atual cobertura da mídia ocidental sobre os eventos dramáticos que se desenrolam em Gaza nas últimas semanas. De fato é um pedacinho tão pequeno do país que nunca existiu como região separada no passado. A história de Gaza antes da “sionização” da Palestina não era única e sempre esteve conectada, administrativa e politicamente, ao resto da Palestina. Até 1948, foi, para todos os propósitos e intenções, parte integral e natural do país. Como uma das principais aberturas por terra e mar da Palestina para o mundo, tendia a desenvolver um estilo de vida mais flexível e cosmopolita; não dessemelhante a outras sociedades em caminhos de passagem no Leste Mediterrâneo na era moderna. Essa localização próxima ao mar e na Via Maris para o Egito e Líbano trouxe com ela prosperidade e estabilidade até essa vida ser interrompida e quase destruída pela limpeza étnica da Palestina feita por Israel em 1948.
Entre 1948 e 1967, Gaza se tornou um enorme campo de refugiados severamente restringido pelas respectivas políticas israelenses e egípcias: ambos os Estados proibiram qualquer movimento para fora da Faixa. As condições de vida já eram severas então, quando as vítimas da política de desapossamento israelense de 1948 dobraram o número de habitantes que viveram lá por séculos. Às vésperas da ocupação israelense de 1967, a natureza catastrófica dessa transformação demográfica à força era evidente em toda a Faixa. Essa parte antes pastoral da costa sul da Palestina se tornou, em duas décadas, uma das áreas de maior densidade populacional do mundo – sem qualquer infraestrutura econômica adequada para sustentá-la.
Os vinte primeiros anos de ocupação israelense ao menos permitiram algum movimento fora de uma área que estava fechada como uma zona de guerra nos anos entre 1948 e 1967. Dezenas de milhares de palestinos puderam entrar no mercado de trabalho israelense como trabalhadores não-especializados e mal pagos. O preço demandado por Israel para esse mercado escravista foi uma rendição total de qualquer luta ou agenda nacional. Quando não se sujeitaram a isso, a “dádiva” do movimento dos trabalhadores foi negada e abolida. Todos esses anos que levaram ao Acordo de Oslo em 1993 foram marcados por uma tentativa israelense de construir a Faixa como um enclave, o qual o Acampamento de Paz esperava que fosse uma parte autônoma do Egito e o Acampamento Nacionalista desejava incluir na Grande Terra de Israel que eles sonhavam estabelecer no lugar da Palestina.
O acordo de Oslo permitiu aos israelenses reafirmar a situação da Faixa como uma entidade geopolítica separada – não apenas fora da Palestina como um todo, mas também cortada à parte da Cisjordânia. Aparentemente, Faixa de Gaza e Cisjordânia estavam sob a Autoridade Palestina, mas qualquer movimento humano entre elas dependia da boa vontade de Israel; algo raro em Israel e que quase desapareceu quando Benjamim Netanyahu chegou ao poder em 1996. Além do mais, Israel detinha, como ainda faz hoje, a infraestrutura de água e eletricidade. Desde 1993, usou, ou melhor, abusou dessa posse de forma a garantir, por um lado, o bem-estar da comunidade colonizadora judaica e, por outro, chantagear a população palestina a se submeter e se render. A população da Faixa de Gaza, por conseguinte, vacilou, nos últimos sessenta anos, entre internados, reféns e prisioneiros em um espaço humano impossível.
É no interior deste contexto histórico que devemos ver a violência que hoje devasta Gaza e rejeitar a referência aos eventos de lá como uma campanha na “guerra contra o terror”, um exemplo de restauração islâmica, uma prova adicional do expansionismo da Al-Qadia [sic], uma penetração iraniana sediciosa nessa parte do mundo, ou mais uma arena no temível Choque de Civilizações (escolhi aqui apenas alguns dos muitos adjetivos usados com freqüência na mídia ocidental para descrever a atual crise em Gaza). As origens da mini guerra civil em Gaza se encontram alhures. A história recente da Faixa, 60 anos de desapossamento, ocupação e aprisionamento produziram inevitavelmente violência interna como a que estamos testemunhando hoje, assim como produziu outras características de vida sob condições impossíveis. Na verdade, seria honesto dizer que a violência, e em particular a violência interna, é muito menor do que se poderia esperar, dadas as condições econômicas e sociais criadas pelas políticas genocidas israelenses nos últimos seis anos.
As lutas pelo poder entre políticos, os quais possuem o apoio de equipes militares, são de fato um negócio sujo que vitimiza a sociedade como um todo. Parte do que ocorre em Gaza é uma luta desse tipo entre políticos que foram democraticamente eleitos e outros que ainda têm dificuldade de aceitar o veredito do público. Mas isso não é exatamente o problema central. O que se desenrola em Gaza é uma batalha entre os representantes locais dos EUA e de Israel – a maioria dos quais são representantes não intencionais, mas não obstante, dançam conforme a música de Israel – e os que lhes fazem oposição. A oposição que agora tomou Gaza o fez, lamentavelmente, de uma forma que dificilmente seria desculpada ou aplaudida por alguém. Não é a visão palestina do Hamas que é preocupante, mas sim os meios que escolheu para atingi-la, os quais esperamos que não se enraízem ou repitam. Para seu crédito, deve ser dito abertamente que os meios usados pelo Hamas são parte de um arsenal que o habilitou, no passado, a ser a única força ativa que ao menos tentou parar a destruição total da Palestina; o método usado agora é menos confiável e, tomara, temporário.
Mas não se pode condenar os meios se não se oferece uma alternativa. Permanecer negligente enquanto a visão américo-israelense de estrangular a Faixa até a morte, limpar metade da Cisjordânia de sua população nativa e ameaçar o resto dos palestinos – dentro de Israel e em outras partes da Cisjordânia – com remoção não é uma opção. É igual ao silêncio das pessoas “decentes” durante o Holocausto.
Não devemos nos cansar de mencionar a alternativa no século 21: BDS (boicote, desinvestimento e sanções) como uma medida de emergência – muito mais efetiva e muito menos violenta – de oposição à presente destruição da Palestina. E ao mesmo tempo conversar aberta, convincente e eficientemente sobre a criação de uma geografia de paz. Uma geografia na qual fenômenos anormais como o aprisionamento de uma pequena porção de terra desapareceriam. Não haverá mais, na visão que devemos levar à frente, um campo de prisioneiros chamado Faixa de Gaza, onde alguns internos armados são facilmente atiçados uns contra os outros por um governador calejado. Em vez disso, aquela área deveria voltar a ser uma parte orgânica do país do Leste Mediterrâneo que sempre ofereceu o melhor como ponto de encontro entre Ocidente e Oriente.
Nunca antes, à luz da tragédia em Gaza, a dupla estratégia de BDS e solução de um Estado [NT: Proposta de paz segundo a qual judeus e palestinos viveriam sob um único Estado laico, democrático e no qual todos os membros dos dois povos sejam cidadãos com igualdade de direitos] brilhou tão claramente como a única alternativa à frente. Se qualquer um de nós for membro de um grupo de solidariedade à Palestina, círculos de diálogo árabe-judeu ou parte do esforço da sociedade civil para trazer paz e reconciliação à Palestina – agora é tempo de deixar de lado todas as falsas estratégias de coexistência, mapas do caminho e soluções de dois Estados. Elas foram e ainda são música para os ouvidos da turma da demolição israelense que ameaça destruir o que sobrou da Palestina. Esteja atento especialmente aos sinonistas Diet ou sionistas Cloest, que recentemente entraram na campanha, na Grã-Bretanha e em outras partes, contra o esforço pró-BDS. Assim como aquelas autoridades iluminadas que usam órgãos liberais no Reino Unido, como The Guardian, para explicar-nos em detalhes quão perigosa é a proposta de boicote acadêmico a Israel. Eles nunca gastaram tanto tempo, energia ou palavras com a ocupação em si quanto fizeram a serviço da limpeza étnica da Palestina. UNISON, o maior sindicato do setor público britânico, não se pode deixar intimidar por essa reação e deveria seguir esses bravos acadêmicos que apoiaram o debate sobre o boicote, como deveria a Europa como um todo: não apenas pela causa da Palestina e de Israel, mas também se deseja pôr um fim ao capítulo do Holocausto em sua história.
E, por fim, um pequeno ponto para meditação. Há um número razoável de mães judias e viúvas na Faixa de Gaza – algumas fontes dentro de Gaza dizem que podem chegar a 2000 – casadas com palestinos locais e mães de suas crianças. Há muito mais mulheres judias que casaram com palestinos na zona rural da Palestina. Um ato contrário à segregação que ambas as elites políticas consideram difícil de admitir, digerir ou reconhecer. Se, apesar da colonização, ocupação, políticas genocidas e desapossamento, tais harmonias de amor e afeição foram possíveis, imagine o que poderia acontecer se essas políticas e ideologias criminosas desaparecessem. Quando o Muro do Apartheid for removido e as cercas elétricas do sionismo desarmadas – Gaza se tornará, mais uma vez, um símbolo da sociedade costeira de Fernand Braudel, capaz de fundir horizontes culturais diferentes e oferecer um espaço para vida nova, em vez da zona de guerra que se tornou nos últimos sessenta anos.
Ilan Pappe é conferencista sênior no Departamento de Ciência Política da Universidade de Haifa e Presidente do Instituto Touma para Estudos Palestinos em Haifa. Seus livros incluem, entre outros, The Making of the Arab-Israeli Conflict (Londres e Nova Iorque, 1992), The Israel/Palestine Question (Londres e Nova Iorque, 1999), A History of Modern Palestine (Cambridge, 2003),The Modern Middle East (Londres e Nova Iorque, 2005) e o mais recente, Ethnic Cleansing of Palestine (2006).
[Artigo publicado n’A Intifada Eletrônica. Tradução: Rafael Fortes.