
Para a única mulher árabe-israelense no Knesset, os palestinos deveriam lutar mais contra restrições impostas por Israel do que por um Estado próprio
TERESA PEROSA, DE JERUSALÉM
Magra e com menos de 1,60 metro, Haneen Zoabi aparenta uma figura frágil. Mas sua singeleza é somente física. A única mulher árabe a ocupar uma cadeira no Knesset, o Parlamento de Israel, gosta da provocação e do embate político. “A realidade aqui é tão injusta, tão feia e agressiva que não podemos nos dar o luxo de ficar calmos, sem nenhuma reação, sem nos envolver em ações de mudança”, disse Zoabi, de 43 anos, em entrevista a ÉPOCA. Ela já era uma parlamentar incômoda dentro do Knesset quando, em maio de 2010, decidiu embarcar no navio Mavi Marmara, parte de uma flotilha humanitária vinda da Turquia que tentava furar o bloqueio marítimo imposto por Israel sobre o território palestino da Faixa de Gaza. Militares israelenses invadiram as embarcações em alto mar, e nove pessoas morreram, o que gerou uma crise diplomática com a Turquia. Acusada de terrorismo, Zoabi quase perdeu o mandato por causa de sua participação na flotilha. Sua candidatura ao Knesset nas últimas eleições chegou a ser impugnada, mas depois autorizada pela Suprema Corte. Ela não se arrepende: “Eu participaria novamente amanhã”. Zoabi representa no Knesset os quase 1,7 milhão de cidadãos árabes que nasceram e vivem em território israelense e, legalmente, são seus cidadãos – correspondem a 20% da população total. Israel os considera árabes-israelenses, mas eles, como Zoabi, preferem ser chamados de palestinos. Zoabi ataca um dos pontos mais delicados para Israel, a definição de Estado judeu. “Não posso ser uma cidadã completa dentro de um Estado judeu. Sou palestina. Por que não podemos ter um Estado, laico, que sirva a todos seus cidadãos?.” Abaixo, a entrevista concedida a ÉPOCA no Jerusalem Hotel, que fica na parte oriental da cidade de Jerusalém – reivindicada pelos palestinos como parte de seu território.
ÉPOCA – As eleições parlamentares de janeiro não correram como esperado para a coalizão de direita do premiê Benjamin Netanyahu. O partido de Netanyahu, o Likud, perdeu 11 cadeiras, enquanto um partido novato de centro, o Yesh Atid, obteve 19 assentos. O que a senhora espera do novo governo?
Haneen Zoabi – No que se refere aos palestinos, nada muda. Eles (os parlamentares do Yesh Atid) podem ser inclusive mais perigosos, porque vão propor novamente a ilusão de negociações. Eles têm quatro razões para fazer isso: a primeira seria evitar o colapso da AutoridadePalestina; a segunda é controlar a tensão e o ressentimento dos palestinos; a terceira é evitar o controle do Hamas; e a quarta é gozar do apoio da comunidade internacional, para que não acusem mais Israel de recusar a paz. Trata-se de uma negociação muito instrumental e manipulativa, porque o governo israelense não encara as negociações como parte do caminho para paz ou justiça, mas como um objetivo em si mesmo. Para eles, a negociação se justifica em si mesma, porque é uma forma de manter o status quo.
ÉPOCA – Em sua recente visita a Israel, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, enfatizou seu apoio incondicional ao país. O discurso nos territórios palestinos foi mais cauteloso, além de ser recebido com muitos protestos. Qual sua expectativa sobre o segundo mandato de Obama?
Zoabi – O discurso de Obama e a mensagem que ele deixou indicam duas coisas: o apoio irrestrito a Israel e sua total ignorância em relação ao que está acontecendo. Apoio e ignorância andam lado a lado. Você não pode apoiar Israel incondicionalmente se você tem conhecimento sobre sua conduta. E não é apenas uma ignorância em relação à política de Israel, mas também ignorância em relação a como falar com a sociedade israelense. Obama acredita que tenha conseguido comover de alguma forma a população israelense. Eu discordo. Ele falou com os israelenses de maneira tola, porque ao dizer “eu os apoio, mesmo com suas opções em relação aos palestinos”, isso significa “mesmo que vocês oprimam os palestinos, eu vou continuar a apoiar e sustentar Israel”. E isso é muito importante para os israelenses. Israel não se importa em ser visto como uma nação de boa moral, mas sim em assegurar o apoio da maior nação do mundo. As coisas mudam quando você diz: eu os apoiarei, desde que se portem de maneira adequada. Então haveria cálculo. Israel ponderaria se valeria a pena continuar agindo assim. O que Obama disse, no fundo, foi que Israel pode continuar com suas políticas opressoras, com a ocupação, com a humilhação. Israel pode fazer qualquer coisa – o apoio é incondicional.
ÉPOCA – O que o seu partido, o Balad (Aliança Nacional Democrática), propõe?
Zoabi – Consideramos o sionismo uma ideologia racista. Não resistimos apenas às políticas, mas também à ideologia, que é a definição principal desse Estado. É errado dizer que existem partidos israelenses e partidos árabes. É preciso diferenciar entre partidos sionistas, partidos não-sionistas e partidos anti-sionistas. Todos os partidos israelenses-judaicos são sionistas, inclusive o Meretz (partido de esquerda). Então, em relação aos direitos dos palestinos dentro de Israel e aos refugiados, a postura deles é a mesma. Recusam o direito de retorno (de palestinos refugiados após as guerras de independência de 1948) e se recusam a me definir como nativa, como alguém que se manteve em sua terra natal. Mesmo a esquerda faz isso. O Meretz me exclui tanto quanto o Likud. Eu não posso ser uma cidadã completa dentro de um Estado judeu. Sou palestina. Você espera que eu aceite viver num Estado judeu? Você espera que eu seja sionista? Já cedi muito dizendo “ok, aqui não haverá um Estado palestino”, mas também não quero um Estado judeu. Por que não podemos ter um Estado, laico, que sirva a todos seus cidadãos? Nós do Balad somos o único partido anti-sionista, porque sugerimos alternativas. E o establishment considera a mim e a meu partido como ameaças estratégicas, porque desafiamos a definição de Israel como um Estado judeu. Porque lutamos por democracia e temos uma visão desvinculada de interesses do que seria igualdade.
ÉPOCA – Por que a esquerda israelense passa por um período de enfraquecimento?
Zoabi – Porque eles não sugerem nenhuma alternativa. No momento em que você não tem uma visão clara, você concorda com o que está ai. Eles não têm coragem de oferecer uma alternativa em voz alta e se tornam fracos em relação ao consenso, que em Israel é muito resistente. Nesse sentido, a esquerda precisa constantemente ser legitimada pelo outro lado.
ÉPOCA – A notícia da morte do prisioneiro palestino Arafat Jaradat, de 30 anos, durante um interrogatório no final de fevereiro, causou uma onda de protestos na Cisjordânia. O governo israelense afirmou que a Autoridade Palestina explorou o caso para incitar a violência. Como a senhora vê esse episódio?
Zoabi – Israel não reconhece o significado de violência, porque se o fizesse, reconheceria a ocupação como um ato de violência em si. Na percepção de Israel, pode-se violar qualquer lei do mundo no que se refere aos direitos dos palestinos: ocupar, roubar terras, expandir assentamentos, roubar a água, derrubar oliveiras. Pode-se fazer qualquer coisa porque se entende que isso seria um ato de autodefesa. Os valores aqui estão invertidos. Israel é a criança mimada do mundo. Aqui eles estão acostumados a violar leis sem nenhum tipo de reprimenda ou sanções, porque continuam gozando do apoio dos EUA. A União Europeia não é exatamente crítica em relação a Israel. Mesmo aqueles que dizem apoiar os palestinos, como o governo brasileiro, continuam assinando acordos comerciais e militares com Israel. Nesse sentido, o Brasil apoia Israel, que goza de uma posição privilegiada com vocês. Então, o que significa esse apoio aos palestinos se continuam apoiando a economia israelense? Há, então, um padrão distorcido. Quando os palestinos resistem – e eles têm o direito de resistir –, nós chamamos de violência e terrorismo. Israel vai mudar sua percepção no momento em que começar, de fato, a pagar o preço pela ocupação. No instante em que os palestinos forem às ruas e confrontarem a ocupação será o momento em que Israel começará a pagar esse preço. Não estou esperando os europeus nem os americanos pararem de apoiar Israel. Estou esperando meu povo ir às ruas, como os egípcios e como aconteceu nas revoluções do mundo árabe, e dizer “basta”.
ÉPOCA – A senhora quase perdeu seu mandato por ter sido uma das passageiras da flotilha que tentou furar o bloqueio marítimo a Gaza, em maio de 2010. A senhora se arrepende do que fez? Por que decidiu participar?
Zoabi – Eu participaria novamente amanhã. Em 2011 eu teria participado de novo, mas foi uma decisão da Turquia não organizar uma nova flotillha. Sinceramente, nem tive que pensar sobre o assunto. Trata-se de uma questão de dever. É meu dever, minha responsabilidade. Não só como palestina, por eles serem meu povo, mas como ser humano. Quando você coloca 1,5 milhão de pessoas (referência à população de Gaza) numa enorme prisão e impõe embargo comercial e econômico, em que faltam remédios, equipamentos médicos ou mesmo lápis e papel para estudantes, isso não se trata apenas de ocupação. É humilhação.
ÉPOCA – E o argumento de impedir o acesso a armas do Hamas, considerado por Israel um grupo terrorista? Israel é alvo de mísseis lançados de Gaza…
Zoabi – Como agente da ocupação, não cabe a você decidir quem é terrorista ou quem não é. Para mim, é absurdo atacar civis com mísseis e foguetes. Não concordo com isso, é claro. Até para que a luta seja justa, não se pode perder a ética quando se está lutando contra a opressão. Mas quem é Israel para dizer aos palestinos quem deve ser seu governo? Não apoio o Hamas, mas essa foi a escolha do meu povo. Eles votaram no Hamas após 17 anos votando no Fatah, porque Israel fez da Autoridade Palestina um agente da ocupação.
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ÉPOCA – A senhora sofreu algum tipo de ameaça por conta de suas atitudes?
Zoabi – Recebi cartas e ligações. O Knesset decidiu me dar proteção por três meses, entre junho e agosto de 2010. Alguns colegas parlamentares tentaram me impedir de falar uma vez, mas nada além disso.
ÉPOCA – Uma das principais plataformas defendidas pela senhora é a igualdade de direitos para os árabes que vivem dentro de Israel. Qual é a situação desse grupo?
Zoabi – Eu me defino como uma cidadã palestina de Israel. Eu recuso essa definição de árabe-israelense. Nós não somos árabes que pertencem a Israel. Não sou israelense porque, para ser de fato israelense, você precisa ser judeu. Então, nós somos palestinos cidadãos de Israel, embora o termo cidadão aqui se aplique apenas de maneira oficial, porque na prática nós somos discriminados. Existem 34 leis que discriminam os palestinos que vivem dentro de Israel. Leis como a de cidadania, a de imigração, a de reunião familiar, a de confisco de terras. A Lei da Educação que diz que o sistema educacional deve promover a língua e cultura hebraica. Sou encarada como inimiga do Estado onde eu moro. Sou um obstáculo para o Estado judeu. Enquanto nós estivermos aqui e mantivermos nossa identidade nacional, o projeto sionista não estará completo.
ÉPOCA – A senhora acredita que um Estado palestino ainda seja viável?
Zoabi – Os acordos de Oslo criaram um discurso totalmente diferente em relação aos palestinos. Oslo destruiu a noção de que os palestinos lutam por liberdade e transformou nossa luta em um desejo por um Estado. Existe uma grande diferença entre querer libertar-se e querer um Estado, que pode ser fraco, inviável e mesmo não-soberano. Sem liberdade, não se pode ter um Estado. Oslo deu a ilusão de uma luta equilibrada, como se houvesse dois lados negociando uma questão. Você distorce a noção de um povo que quer se libertar, que existe uma ocupação e, portanto, um ocupador e um ocupado. A visão de dois Estados é um paradigma mais fácil para a comunidade internacional. Esse paradigma acaba por apoiar Israel, porque torna possível que os israelenses culpem os palestinos do que acontece aqui. Mudar esse paradigma – e não digo necessariamente para o de “um Estado”, mas para um paradigma de justiça – é difícil porque Oslo criou uma Autoridade Palestina com interesses próprios. Existe um grupo vip de palestinos que se beneficia do que acontece, que mina a necessidade de uma luta verdadeira. Eu particularmente não me preocupo com a questão de um Estado ou dois. Não acredito que essa seja a questão mais importante. A discussão que importa aqui é a de valores: justiça, liberdade, igualdade. Se nós conseguirmos adotar isso a partir de dois Estados ou em um Estado, que as