ILAN PAPPE CONTA A HISTÓRIA DO MASSACRE NA PALESTINA

O filósofo Paul Virilio, no seu livro Estratégia da Decepção, ao falar sobre as estratégias de guerra teletecnológica do final do século XX, diz que a informação – ou...

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O filósofo Paul Virilio, no seu livro Estratégia da Decepção, ao falar sobre as estratégias de guerra teletecnológica do final do século XX, diz que a informação – ou a ausência dela – é essencial para se obter a vantagem em um conflito. Fabricar uma verdade torna-se mais importante que conquistar um território. Ao menos é o que pensam os aspirantes a Göebbels do novo milênio, a despeito das derrotas fragorosas a que têm sido submetidos, desde antes do Vietnam até hoje.

E é no sentido de enfraquecer a estratégia midiática da (des)informação que este bloguinho traz a transcrição de uma reveladora entrevista com o historiador israelense Ilan Pappe (Universidade de Oxford), autor do livro The Ethnic Cleansing of Palestine – A Limpeza Étnica da Palestina, transmitida pelo programa Milênio, da tevê fechada, no meio do ano passado. Nela, embora o repórter Silio Bocanera refira-se constantemente aos palestinos como “eles” – o outro, o inimigo, na semântica paranóide estadunidense, o relato do engajado historiador acaba prevalecendo, e traz informações relevantes para a compreensão do conflito e do massacre de Gaza.

O vídeo rolou por vários blogues ativistas e, de nossa parte, pescamo-lo do companheiro Lukas, do Casa do Noca. Você pode conferir, se tiver paciência e conexão banda larga, clicando aqui.

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Silio Boccanera – A sua pesquisa para o livro indicou que havia um plano evidente de tirar da Palestina uma vasta área habitada para formação de um Estado Judeu, antes de o mesmo ter sido criado. Desde quando houve este planejamento, e quem o fez?

Ilan Pappe – A idéia de eliminar a Palestina de sua população nativa, dos árabes, surgiu como um conceito claro nos anos 1930. Foi idealizada por David Ben Gurion, que se tornou o Primeiro-Ministro de Israel. Na época, líder da comunidade judaica, na Palestina de 1948, antes de Israel existir. No entanto, a idéia de como traduzir esse desejo, essa estratégia em um plano só se desenvolveu após a II Guerra Mundial. Na realidade, o primeiro passo foi fazer um registro de todas as aldeias palestinas. É um registro espantoso. Quando o vi, mal pude acreditar. Era tão meticuloso que detalhava quantas árvores frutíferas haviam em cada aldeia e de quais frutas eram, além, é claro, dos poços que havia e da qualidade do solo nas aldeias. Foi um levantamento sério da futura propriedade do Estado Judeu.

SB – Como disse, os árabes não tinham poder, porque seus líderes haviam sido eliminados na revolta de 1936. E a liderança judaica se voltou contra os britânicos após a II Guerra Mundial…

IP – Sim, absolutamente tem razão. A decisão veio porque, ao contrário do que esperavam, a Grã-Bretanha resolveu não deixar a Palestina. Buscava um tipo de acordo que envolvesse judeus e palestinos juntos, sob o poder britânico, e era contra a vontade da liderança sionista. Creio que analisaram corretamente a fraqueza da Grã-Bretanha pós II Guerra Mundial e iniciaram uma guerrilha contra os britânicos. Mas ela não durou muito, pois os britânicos já estavam de saída. Apenas ajudou as autoridades britânicas a concluírem que não queriam mais a Palestina.

Os judeus eram 1/3 da população apenas, e a ONU lhes havia prometido metade da Palestina. A maioria dos judeus chegara 2 ou 3 anos antes e já tinha direito a metade do país”.

SB – Transferiram o poder para a ONU, inclinada a favor de Israel, que decidiu por um plano de partilha. Israel concordou com o plano, os árabes não. Por que o senhor acha que não concordaram?

IP – Pelo ponto de vista dos palestinos, os colonizadores judeus não eram diferentes dos colonizadores franceses da Argélia. Era impensável para o povo argelino concordar com a divisão do país entre os franceses e eles. Do ponto de vista palestino, seria a mesma coisa, mashá outros fatores que podem explicar a decisão palestina, embora tenha sido melhor, na época, aceitar que era uma tática. Mas é possível entender os motivos. Os judeus eram 1/3 da população apenas, e a ONU lhes havia prometido metade da Palestina. A maioria dos judeus chegara 2 ou 3 anos antes e já tinha direito a metade do país. E, acima de tudo, alguns membros da ONU sabiam que estavam oferecendo um estado judeu com muitos palestinos – quase o mesmo número de palestinos e judeus – o que era inaceitável para o movimento sionista. A tendência do movimento sionista à limpeza étnica já era conhecida de alguns no mundo árabe, e os palestinos foram contra a decisão da ONU.

SB – Daí até a criação do Estado de Israel em maio do ano seguinte, em 1948, foi o momento crucial, quando a lideraná judaica se reuniu e, segundo sua pesquisa, tentou atacar os árabes. Como eles fizeram isso? Qual foi o plano?

IP – Esse foi exatamente o período formativo. Em primeiro lugar, eles procuraram preparar os meios para o que pensaram que seria uma luta em duas frentes. Pensaram que o mundo árabe tentaria, simbolicamente, não de maneira séria, desafiar a resolução de divisão da ONU invadindo a Palestina. Precisavam de um exército que pudesse enfrentar os exércitos árabes. A segunda frente de batalha em que pensaram era na parte da Palestina que queriam transformar no estado judeu. Não conseguiram a divisão feita pela ONU. Resolveram tomar a Palestina toda. Uma parte do que hoje é a Cisjordânia, que eles prometeram ao rei Abdala, da Jordânia, o bisavô do atual rei Abdala representava 80% da Palestina, habitada por 1 milhão de palestinos. Eles, primeiro, procuraram meios de expulsar esse 1 milhão de palestinos. Em segundo lugar, eles estavam cientes de que o mundo ainda observava. Os oficiais britânicos continuaram na Palestina até maio de 1948, havia representantes da ONU no local e a imprensa ocidental continuava lá. Havia muitas pessoas ainda interessadas nos acontecimentos, principalmente nos EUA. Então, não começou em um dia. Eles procuravam os inevitáveis confrontos e tensões que aconteciam entre as comunidades palestina e judaica principalmente nos centros urbanos, onde as pessoas moravam próximas. Onde havia algum grande evento, como a resolução de partilha da ONU, ocorriam atentados em ambos os lados. Decidiram executar tais ações com os palestinos como pretexto para, primeiro, expulsar uma aldeia. Depois, expulsar duas, cinco aldeias. Não ocorreu em ritmo acelerado até uma data muito importante, 10 de maio de 1948, quando sentiram que o mandato britânico estava prestes a acabar, e eles ainda não tinham limpado a Palestina. Foi nesse momento que decidiram agir de forma mais sistemática.

(…) não conseguiram acreditar quando o exército israelense chegou e lhes deu menos de 1 hora para levarem o que pudessem das aldeias onde moravam há milhares de anos, atirando para o alto, para acelerar a fuga, massacrando aqueles que resistissem e estuprando as mulheres”.

SB – A narrativa oficial do Estado é que os árabes tomaram a decisão a partir, em parte, da propaganda árabe de transmissões de rádio e porque os países vizinhos aconseharam-nos a partir. Então, 800 mil árabes partiram por conta própria. Não é o seu ponto de vista.

IP – Não, isso é pura mentira. Hoje em dia, entre historiadores profissionais, as pessoas hesitam em repetir essa fábula. Não existe prova de tal ordem ou transmissão. E tivemos boas fontes. Os britânicos gravavam tudo que ia ao ar desde os anos 1930 na Palestina e no Oriente Médio em geral. Eu sei que a versão popular de Israel ainda é a que citou, de que o povo fugiu voluntariamente. Mas, se pensar na linguística, seja em hebraico, em português ou inglês, é uma expressão muito bizarra a de que o povo “fugiu voluntariamente”. Só maratonistas correm voluntariamente. Quem foge não o faz voluntariamente. A imagem que está vívida em minha mente e, em muitos aspectos, embasa o livro, são as histórias que vi nas aldeias litorâneas da Palestina e, mais tarde, de Israel, pois eram próximas de onde eu morava em Israel. Nessas aldeias, as pessoas, segundo a resolução de partilha da ONU, deveriam ser cidadãs israelenses. Faziam parte do futuro estado judaico. E elas se resignaram à essa idéia. Disseram: “os otomanos nos oprimiram, os turcos e os britânicos também. Agora os judeus mandarão em nós”. Eram camponeses e fazendeiros humildes que viram apenas com outro novo governo. Mas não conseguiram acreditar quando o exército israelense chegou e lhes deu menos de 1 hora para levarem o que pudessem das aldeias onde moravam há milhares de anos, atirando para o alto, para acelerar a fuga, massacrando aqueles que resistissem e estuprando as mulheres. Para mim, como relato no livro, alguém cuja família soberviveu ao holocausto nazista, embora a minha não tenha sobrevivido, a idéia de que os judeus pudessem fazer isso três anos após o holocausto ainda hoje é incompreensível para mim.

SB – Como o senhor citou, uma das principais figuras deste procedimento que seu livro chama de “limpeza étnica” foi Ben Gurion. O senhor o vê como arquiteto da limpeza étnica?

IP – É como eu o vejo. É verdade em relação ao sionismo como um todo. Meu falecido amigo, Edward Said, dizia… Ele tinha uma visão muito peculiar e pungente. Ele dizia que o sionismo, o que também vale para David Ben Gurion, foi bom para os judeus. O sionismo salvou minha família da Alemanha. O sionismo teve muitas conquistas, e Ben Gurion foi responsável por várias delas. Mas no que se refere aos palestinos, o sionismo foi a pior coisa que poderia acontecer. Acabou com eles.

SB – Outro nome que o senhor cita de forma não muito favorável nessa época é Yitzhak Rabin.

IP – Sem dúvida.

SB – O que ele fez?

IP – Ele era muito mais jovem que Ben Gurion. Tinha 40 anos a menos. Ben Gurion tinha pouco mais de 60 anos, e Yitzhak Rabin, pouco mais de 20. Ele foi responsável por uma parte da limpeza étnica, porém uma parte horrenda. No centro da Palestina haviam duas cidades, chamadas Lydda e Ramla, onde viviam cerca de 100 mil pessoas. Ele foi o responsável por erradicá-las no verão de 1948. O verão na Palestina é muito quente. Ele e seus colegas os obrigaram a marchar até a Cisjordânia, a dezenas de quilômetros. Muitos morreram no caminho, de fome e sede. Um aspecto muito desumano da limpeza étnica. Como eu disse antes, um crime contra a Humanidade.

No centro da Palestina haviam duas cidades, chamadas Lydda e Ramla, onde viviam cerca de 100 mil pessoas. Ele foi o responsável por erradicá-las no verão de 1948. O verão na Palestina é muito quente. Ele e seus colegas os obrigaram a marchar até a Cisjordânia, a dezenas de quilômetros. Muitos morreram no caminho, de fome e sede”.

SB – Menachem Begin e Yitzhak Shamir também estavam envolvidos nesta fase ou não?

IP – Esse é o grande… Não o grande, mas um dos sucessos da propaganda israelense. Os piores crimes contra os palestinos foram cometidos pelo movimento trabalhista. Eu nunca admirei Shamir e Begin. Mas pode-se dizer que fizeram bem menos que os líderes do movimento trabalhista. Mesmo quando foram primeiros-ministros, fizeram coisas horríveis nos territórios ocupados, e Begin obviamente é responsável pela destruição do Líbano em 1982. Mas ainda mal se compara ao que os líderes do movimento trabalhista fizeram em 1948.

SB – Passando para os anos 1950, essa limpeza étnica prosseguiu?

IP – Ela persiste ainda hoje, neste momento. Há limpeza étnica em Jerusalém e em toda parte. Sim, ela prosseguiu nos anos 1950. O interessante é que Ben Gurion é o responsável. A limpeza étnica não se completou. Foi uma grande operação, e tiveram de deixar, pelo menos, 10% da população que desejavam eliminar. Foi assim que as minorias árabes e israelense surgiram. Para Ben Gurion e seus assessores pessoais, era um número muito alto. Ele queria um estado judeu limpo. Então, tentaram de formas diferentes, pois não havia mais guerra e o mundo estava mais sensível do que antes. Tentaram obrigar as pessoas a imigrar e, em alguns casos, como ocorreu em mais de 30 aldeias, a maioria delas pequena, continuaram com a expulsão. Não houve um dia na história da Palestina e de Israel, desde 1948, em que a máquina da limpeza étnica tenha parado. Ela funciona o tempo inteiro. Há uma definição muito interessante no meu livro, dada no site do Departamento de Estado Americano, eles dizem que após toda operação de limpeza étnica na história, foi apagada a história de seu povo. Não se limitou ao extermínio do povo, mas também apagar a sua história. Eles apagam o povo dos livros de História e do próprio local. Com Israel, não é diferente. Como explico no meu livro, há um mecanismo muito elaborado que inclui a plantação de florestas, a substituição de nomes palestinos por hebreus, o que teve início em 1948 e persiste na Cisjordânia, na grande Jerusalém.

SB – Subitamente, uma nova liderança, novos movimentos nacionalistas começam a crescer no início dos anos 1960, a OLP, a Fatah, a Frente Democrática e outros grupos como esses. O senhor vê um paralelo entre o que começaram a fazer e o que o Irgun, oHaganah e o Stern fizeram?

IP – De certa forma. Há alguns paralelos entre os métodos e a luta de guerrilha. Mas há uma grande diferença entre um grupo de colonialistas modernos, colonialistas do século XX, que tentam, como ocorreu na Argélia, não permitir que o movimento entre na era pós-colonialista e um movimento anticolonialismo como o dos palestinos. É uma grande diferença a meu ver. A OLP era e continua sendo um movimento anticolonialista. O Irgun e o Haganah não eram anticolonialistas, eram um pouco como os brancos na África do Sul. Tentavam reter uma realidade aceitável no século XIX, mas não mais no mundo pós II guerra Mundial pela visão ética surgida ao menos no Ocidente.

[A limpeza étnica] Não se limitou ao extermínio do povo, mas também apagar a sua história. Eles apagam o povo dos livros de História e do próprio local. Com Israel, não é diferente”.

SB – Mas o senhor vê um paralelo com os métodos, ataques a civis por motivos políticos, é a definição básica de terrorismo.

IP – Sim, claro. E é importante lembrar isso aos israelenses quando chamam os palestinos de terroristas. Eles também já foram terroristas.

SB – Deste conceito de limpeza étnica, de eliminação dos árabes, passamos para a chamada bomba demográfica que existe na região. Chamavam de ‘problema demográfico’, agora é um perigo demográfico, uma bomba. O que é essa bomba, esse perigo, pelo ponto de vista deles?

IP – É um conceito muito claro. É um consenso entre os maiores políticos de Israel ou membros principais da elite política. Há uma maneira quantitativa de saber quando os árabes se tornam um perigo. Está entre 20 e 25%. Eu sei este número porque vivem citando. Entre 20 e 25% da população de Israel. Quando determina o que é o Estado de Israel, se nesse estado houver 25 mil não-judeus, com cidadania israelense mas etnia árabe, aos olhos da elite política de Israel, será o sinal do final do Estado.

SB – E claro que o índice de natalidade é muito maior entre eles.

IP – Muito maior. Vai acontecer. Mesmo que devolvam metade da Cisjordânia ou transfiram pequenos grupos de Jerusalem Oriental. Isto me preocupa muito. Não vejo como impedir. Eu temo que os políticos populares israelenses pensem que, caso isto aconteça, pois ainda somam menos de 20%, mas que caso aconteça, podem usar de quaisquer meios à disposição deles, incluindo a limpeza étnica, para evitar esta situação. Se perguntar a qualquer israelense nas ruas, ele dirá que esse é o valor mais importante, acima da democracia, dos direitos humanos e civis.

Os israelenses não podem mais separar as populações judaicas e palestinas na região. Eles fizeram muitos assentamentos na Cisjordânia. E continuam fazendo. As comunidades estão entrelaçadas. Às vezes, a realidade pode mandar nas elites políticas. Geralmente, ocorre o contrário, mas neste caso já vemos indícios disso.

SB – É concebível que Israel desista de ser um estado judeu e seja como outros estados, acomodando crenças sem ser exclusivamente o chamado estado judeu, mas um estado mais aberto, normal e democrático?

IP – Não a curto prazo. A curto prazo, não seria possível. Mas há uma boa chance a longo prazo, por dois motivos principais. Acho que estão exagerando no momento. No passado, foram sensatos em não fazer certas coisas por achar que o mundo estava atento. Felizmente, estão exagerando agora. E acho que estão testando a paciência mundial. Quando o poder global americano diminuir, e ele vai diminuir dentro em breve, o mundo ficará ainda mais corajoso ao tentar expor o lado mais racista do estado judeu. Em outras palavras, prevejo uma pressão muito forte e até externa sobre Israel. Mas não será de imediato. Em segundo lugar, penso nas realidades locais. Os israelenses não podem mais separar as populações judaicas e palestinas na região. Eles fizeram muitos assentamentos na Cisjordânia. E continuam fazendo. As comunidades estão entrelaçadas. Às vezes, a realidade pode mandar nas elites políticas. Geralmente, ocorre o contrário, mas neste caso já vemos indícios disso. Até os israelenses mais racistas, digamos assim, acham que os filhos devem aprender árabe, e jamais quiseram isso antes. Começam a notar que fazem parte desta realidade. E até os palestinos mais fanáticos querem que os filhos aprendam hebraico, apesar do que dizem sobre matarem uns aos outros.

SB – Vêem uma realidade diferente no futuro. Um estado binacional.

IP – Sim. Um estado binacional, comunidades entrelaçadas. Não necessariamente começando com muito amor, não necessariamente felizes com tal realidade, mas chegando cada vez mais à conclusão de que qualquer outra situação é o que os americanos chamam de “destruição mútua”. Acho que os processos locais e a impaciência mundial com os problemas que Israel vai causar ao mundo, pois ainda não chegamos ao fim deles, sobretudo no front, contra o Irã e a Síria, um dia, não imediatamente, trarão a chance de se construir uma nova realidade na Palestina. Claro que há hipóteses bem mais terríveis, como o sucesso de Israel na eliminação dos palestinos, antes que o mundo possa agir. É, infelizmente, uma possibilidade. Mas espero… Não quero nem pensar nisso.

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