Entrevista

André Deak – O seu blog é uma das melhores fontes em português sobre o que ocorre em Gaza hoje. Como se envolveu com a questão palestina? Foi em...

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André Deak – O seu blog é uma das melhores fontes em português sobre o que ocorre em Gaza hoje. Como se envolveu com a questão palestina?

Foi em 1982, quando Israel invadiu o Líbano. A brutalidade dos massacres sofridos por palestinos dasarmados em campos de refugiados como os de Sabra e Chatila foram o despertar inicial, simultâneo à percepção de que a imprensa e os governos ocidentais sempre tratavam a questão com luvas de pelica. Depois, li a obra deEdward Said. O contato com a cultura árabe – através de escritores como Ahdaf Soueif – veio depois. Depois ainda, veio a leitura da grande historiografia ocidental sobre a região, de Illan Pappé a Robert Fisk. O meu interesse é aguçado pela trajetória profissional: a formação do hispanista pressupõe algum estudo de Al-Andalus, período de controle árabe sobre a atual Andaluzia, onde árabes, judeus e cristãos viveram em relativa paz: um contra-exemplo cabal para os que falam de raízes “milenares”da situação de hoje.

Rodrigo Savazoni – Pelo que vi, a Faixa de Gaza é hoje uma região majoritariamente habitada por crianças e jovens (perfil demográfico da maioria das regiões pobres do planeta). É possível pedir a condenação de Israel no Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade e por infanticídio em massa?

A maioria dos especialistas em direito internacional concordam que há extenso fundamento para as acusações de crimes de guerra e de lesa-humanidade de Israel nos Territórios Ocupados da Palestina. É juridicamente possível, claro, mas não é factível politicamente, por causa da lei do mais forte.


AD – A versão dos fatos que parece prevalecer atualmente é a seguinte: O Hamas lançava foguetes diariamente em Israel, e para evitar que a população israelense continuasse vivendo sob o medo Israel precisou tomar uma atitude drástica, porque “o Hamas só entende a força bruta”. Essa versão foi contada, de uma maneira ou de outra, por diversos oficiais e políticos israelenses e repetida diariamente nos jornais. O que realmente aconteceu?

O que o próprio Haaretz noticiou. A invasão foi preparada durante seis meses, a “trégua” se manteve de junho a 04 de novembro – entenda-se “trégua” como manutenção da prisão ao ar livre de Gaza sem reação nenhuma dos palestinos – e, nesse dia 04, dia da eleição americana, Israel invadiu Gaza e matou pelo menos seis palestinos, conseguindo o que queria, ou seja, que o Hamas lhe desse um pretexto para a matança. De olho num recadinho para Obama e nas suas próprias eleições, Israel bateu até que o Hamas reagisse com as precárias armas que tem. Dado o pretexto, entra o exército e realiza a chacina.

AD – Li também nos jornais que, quando houve a “retirada unilateral dos assentados israelenses”, o Hamas levantou faixas dizendo que “três anos de Intifada são melhores do que dez anos de política”. Ou seja: os ataques a Israel teriam se intensificado porque o Hamas entendeu que os foguetes deram resultado. Isso é verdade?

Houve retirada de Gaza num período em que os assentamentos colonizadores só aumentaram na Cisjordânia, que é onde eles sempre estiveram massivamente, diga-se em primeiro lugar. Mas quanto ao tipo de enunciado que você menciona, o Hamas está jogando o jogo político dele, de apresentar o Fatah, no melhor dos casos, como uma moderação fracassada ou, no pior, como traidores vendidos. A ocupação militar durante 40 anos deixou a situação tão desesperadora que a mensagem ecoa, mesmo entre os palestinos, que sempre foram – ao lado dos iraquianos, ironicamente – um dos povos mais seculares do mundo árabe. A questão que há que se responder não é por que o Hamas reagiu quando a trégua foi rompida por Israel, com invasão e assassinatos secretos. A questão que há que se explicar é por que o tão demonizado Hamas aceitou ficar meses sem lançar foguetes. É a prova cabal, de novo, de que Israel tem todas as cartas da negociação nas mãos.

Jorge Rocha – Eu considero o trabalho de pessoas como o cartunista Latuff – que você também faz questão de elogiar – como um exemplo de jornalismo. Até que ponto iniciativas como essa, e incluo nesse montante fontes de contraposição de opiniões da mídia massiva, podem influenciar certa – vá lá – opinião pública ?

Cumpre um papel importante, que talvez só seja mesmo possível avaliar retrospectivamente. A opinião pública pode mover-se mais. Há simpatia e um embrião de conhecimento disseminado da situação. Mas há ainda pouca compreensão do fato de que a única solução possível virá de pressão internacional e que, portanto, as campanhas de boicote e desinvestimento são muito importantes. Esse passo ainda é embrionário na América Latina e já é um pouco mais compreendido na Europa. Nos EUA, claro, ele é inimaginável. Aqui, o lobby pró-Israel – que, insisto, a longo prazo é um lobby anti-Israel – tem o controle completo de todo o horizonte do dizível na política.

RS – Do ponto de vista do ordenamento institucional internacional – essa coisa vaga a que chamamos política externa (e que nunca funciona quando necessário) – quais são as medidas cabíveis que a sociedade civil pode exigir?

Depende de qual sociedade civil você tenha em mente. A palestina já não pode exigir nada, porque todos os movimentos de resistência pacífica foram ignorados e / ou massacrados. A israelense – sua esmagadora maioria — já não quer exigir nada nesse sentido, dominada que está pelo medo e pela chantagem do seu establishment político. As sociedades civis ocidentais, estas sim, devem se mexer. Intensificar as iniciativas de boicote, aprofundar os contatos com as precárias organizações da socidade civil palestina, colocar pressão em seus governos.

JR – Você foi um dos primeiros a repercutir a informação sobre o blog que a repórter da Globo, Renata Malkes, manteve entre 2000 e 2007, escrevendo sobre a “questão do Oriente Médio” – termo eufemista para barbaridades. O blog Cloaca News, que levantou o caso, apontava que era uma cobertura que visava “divulgação da propaganda sionista” e você concordou enfaticamente. Mantém essa posição ?

Quem nos dera que tivesse sido só um blog de propaganda sionista. Era muito mais: era um blog de celebração de Eretz Israel, de auê belicista e intenso racismo anti-árabe. Houve jornalista que tentou livrar a barra dizendo que os blogs tinham “linchado” o que a Renata Malkes havia escrito “quando tinha 20 anos”, desonestamente omitindo o fato de que ela não completou vinte anos junto com Garrincha, mas outro dia. O próximo funcionário da grande mídia brasileira que reclamar comigo de “linchamento” nos blogs que apresente, por favor, transcrição de 10 a 15 entrevistas com membros do PT sobre o que foi ler jornais ou revistas e assistir à televisão em 2005 e 2006. Depois que os blogs prestam esse serviço público – mostrar que a pessoa que está entrando nas casas brasileiras pela televisão via concessão pública para cobrir uma ocupação colonial era, até três ou quatro anos atrás, autora de textos racistas entusiastas dessa mesma ocupação –, vem jornalista dizer que os blogs devem “pedir desculpas”? Pelo fato de que ela não “serviu” ao exército, como mui razoavelmente deduziu o Cloaca da festa feita por ela no blog por ter sido aceita na instituição? Fumou e não tragou, e daí? Informação errada? Informação errada é escrever “quando ela tinha 20 anos” querendo enganar o leitor. Pior de tudo foi a tentativa de convencer os outros de que os blogs erraram ao não “ir ouvi-la”, como se se tratasse de querer saber da moça, apurar algo sobre ela, ao invés do que realmente importava, criticar um texto que está(va) na internet — um direito de qualquer um. Neste caso, tratava-se de um lixo que só tinha relevância, evidentemente, porque havia sido escrito pela única pessoa com acesso a quase todos os televisores do país com “notícias” sobre a chacina. A Rede Globo de Televisão deve desculpas a seus telespectadores por mais essa monstruosa falta de transparência. Os funcionários da grande mídia precisam realizar um estágio com Olívio Dutra, por exemplo, sobre o que é ser massacrado incessantemente com palavras durante anos, ao invés de fazerem esses escândalos de dondocas “linchadas” toda vez que são criticados.

JR – Doze horas após ser escolhido como o candidato do Partido Democrata estadunidense, Barack Obama prometeu um apoio de 30 bilhões de dólares à Israel como assistência militar. Qual é o seu prognóstico a respeito da posição desta gestão e a cobertura midiática dessas, chamemos assim, aproximações táticas ?

Obama opera num ambiente político em que o lobby pró-Israel tem, nas mãos, praticamente todo o Congresso. Converse com qualquer deputado ou senador em off. Os relatos são assustadores. Para vencer a eleição, Obama teve que dar suas demonstrações de lealdade ao lobby. A suspensão da ajuda militar a Israel é uma bandeira que, neste momento, está além do limite do possível. A indicação de George Mitchell é muito boa. Dentro do espaço estreito em que uma solução é possível, Mitchell é um cara que tem condições de conseguir algum progresso. Mas com o estrago feito pelas sucessivas chacinas, a diuturna expansão dos assentamentos colonizadores, o desespero e a desilusão do lado palestino, as péssimas notícias das eleições israelenses e o barulho chantagista do lobby “pró-Israel” nos EUA, só um louco para ser otimista.

AD – Interesses comerciais dos EUA e de Israel, poder militar, sanções… Isso é o bastante para evitar que algum país se levante contra esse massacre?

Que algum país se levantasse militarmente contra Israel seria uma medida desesperada e provavelmente fracassada. A saída é a pressão internacional para que se produzam condições menos asfixiantes de negociação. Fora disso, não vejo nada. Quero dizer, vejo, mas é uma horrenda tragédia.

RS – Quantas crianças mais terão que morrer para que a imprensa planetária comece a relatar os fatos com a dimensão que eles têm?

Quando se alterarem as relações de força entre os vários grupos sociais que exercem pressão sobre essa imprensa. Quantas crianças palestinas morrerão até lá, não sei. Muitas, provavelmente.

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