
Edward Said é o único intelectual palestino de renome mundial.
Passou, no entanto, a maior parte da vida distante de seu país de
origem. Nascido em Jerusalém, em 1935, mudou-se para os Estados
Unidos em 1951 e vive lá até hoje. Ensina literatura comparada na
Universidade Colúmbia, em Nova York, e mantém uma coluna de crítica
musical no jornal The Nation. Um de seus livros, Orientalismo,
lançado em 1978, marcou época no campo dos estudos culturais. Nessa
obra, ele defende a tese de que, sob as representações do Oriente
formuladas por ocidentais, se esconde o desejo de criar uma imagem
discriminatória e autoritária do “outro”, do “estranho”. Said é
também um ativista profundamente enredado na discussão do conflito
entre israelenses e palestinos. Até o fim dos anos 80, ele foi
próximo do líder palestino Yasser Arafat. Na última década, assumiu
uma posição de total independência crítica. Duas coletâneas recém-
lançadas no Brasil oferecem um panorama de seu pensamento: Cultura e
Política (Boitempo) e Reflexões sobre o Exílio (Companhia das
Letras). Há doze anos, Said luta contra um tipo raro de leucemia. “A
doença despertou em mim o sentimento de que a vida é precária, e me
fez agir com mais urgência e intensidade”, disse ele em entrevista a
VEJA, de Nova York.
Veja – O plano de paz firmado há três semanas entre as lideranças
palestina e israelense o deixou otimista?
Said – Não, nem um pouco. A única fonte de otimismo, a meu ver,
continua sendo a coragem dos palestinos para resistir. Foi por causa
da Intifada e porque os palestinos se recusaram a capitular diante
dos israelenses que chegamos à mesa de negociação – e não apesar de
tudo isso, como alguns insistem em dizer. O povo palestino vai
continuar se opondo aos assentamentos ilegais, ao exército de
ocupação, aos esforços políticos para pôr um ponto final em sua
aspiração legítima de ter um Estado. A sociedade palestina vai
subsistir, apesar de todos os esforços que têm sido feitos para
sufocá-la.
Veja – Não há futuro, então, para o plano de paz da maneira como ele
foi traçado?
Said – Esse plano não aborda os problemas e as reivindicações reais
do povo palestino. Estamos falando de uma nação que foi destruída
mais de cinqüenta anos atrás. Sua população foi privada de suas
propriedades, 70% dela ficou desabrigada. Ainda hoje, 4 milhões de
palestinos vivem refugiados no Oriente Médio e em outras regiões do
mundo. Desde 1948 a ONU reafirma a ilegalidade dessa situação e diz
que essas pessoas deveriam ser indenizadas ou repatriadas. O plano de
paz, no entanto, não toca nesse ponto. O plano também não diz nada
sobre a ocupação militar que começou em 1967. Estamos falando da mais
longa ocupação militar da história moderna. Milhares de casas foram
destruídas e, em seu lugar, surgiram quase 2 000 assentamentos
israelenses habitados por cerca de 200 000 colonos. A seção leste de
Jerusalém foi indevidamente anexada por Israel, que, além disso, nos
últimos dois anos e meio, manteve os 3 milhões de habitantes da Faixa
de Gaza e da Cisjordânia sob toque de recolher e restrições de
direitos humilhantes. Nada disso é mencionado pelo plano de paz. E
tampouco a questão das fronteiras de um futuro Estado palestino é
abordada com clareza. Não há menção às fronteiras que existiam antes
de 1967, muito menos à idéia de restabelecê-las. Ou seja, Israel se
propõe a reconhecer um Estado palestino – mas provisório e sem
território estabelecido. Na essência, tudo que o plano diz é que os
palestinos devem abrir mão da resistência, parar de lutar. Em
contrapartida, Israel eventualmente levantaria algumas das restrições
que impõe ao povo palestino – mas isso é dito sem maiores
especificações. O plano não prevê mecanismos efetivos de
implementação de suas fases. Assim como ocorreu nas negociações de
Oslo, em 1993, as decisões ficariam a cargo dos israelenses. Em
resumo, estamos falando de um plano que não leva a lugar algum.
Veja – Qual seria a alternativa?
Said – O único ponto de partida realista consiste em fortalecer as
instituições democráticas palestinas e israelenses para que novas
lideranças surjam. Não sei quais seriam os nomes israelenses – do
lado deles, meu conhecimento se limita a gente da universidade e do
meio artístico. Mas entre os palestinos há diversas figuras políticas
de talento e força popular que ainda não assumiram papéis que façam
plena justiça a suas potencialidades.
Veja – Durante muito tempo o senhor colaborou com Arafat. Quando se
desiludiu com ele?
Said – Arafat cometeu uma série de erros políticos muito graves. O
pior de todos foi apoiar o Iraque quando Saddam Hussein invadiu o
Kuwait. Para manter-se no poder depois daquilo, ele assumiu uma série
de compromissos desastrosos com os Estados Unidos e com Israel,
culminando no acordo de Oslo, em 1993 – na minha opinião, uma
vergonhosa capitulação da parte dele. Nesse momento, Arafat já havia
deixado de pensar no povo que representava e preocupava-se apenas com
sua própria sobrevivência política. No começo dos anos 90, Arafat
devia ter simplesmente saído de cena. Em vez disso, mentiu para o
povo e para si próprio, dizendo que havia finalmente lançado as bases
para o surgimento de um Estado palestino independente. Dali em diante
as coisas só pioraram. Ele criou um regime corrupto e brutal na
Cisjordânia e desqualificou-se totalmente como líder. Arafat está
acabado.
Veja – O novo primeiro-ministro palestino, Abu Mazen, foi o nome
certo para substituir Arafat nas negociações de paz?
Said – De maneira nenhuma. Ele é um pobre clone de Arafat. Conheço-o
desde os anos 70, ainda que não de maneira muito próxima. Estamos
falando de um burocrata eficiente, mas desprovido de qualquer apoio
popular significativo. Ele depende de Arafat para agir, digam o que
disserem em sentido contrário. Abu Mazen não é um líder, ele é um
eterno número dois. Mais importante que isso, ele não tem espírito
combativo. Desde Oslo, tem se mostrado muito ansioso para fazer
concessões aos Estados Unidos e a Israel. Capitulou em tudo que
poderia capitular e caminha numa estrada sem saída. Como muita gente
que se educou na mentalidade colonial, ele acredita que a salvação
está nas mãos do homem branco ocidental. Mas não é lendo discursos
escritos por um assistente de Donald Rumsfeld que vamos chegar lá.
Bush não é a solução de nossos problemas – e muito menos Ariel
Sharon.
Veja – Abu Mazen tem força para conter as organizações terroristas
sediadas na Palestina, como pedem os acordos de paz?
Said – Abu Mazen tem força para pouca coisa. Dito isso, sempre hesito
muito em discutir a questão do terrorismo, porque o tema é sempre
abordado num vácuo de referências históricas e políticas. Os
palestinos, repito, foram privados de sua terra há mais de cinqüenta
anos, foram submetidos a uma pesada ocupação militar, e viram seu
cotidiano transformado num inferno. Já houve estados de sítio
decretados por Israel que duraram 89 dias. Nesses períodos, as
pessoas só podiam sair de casa umas poucas horas por dia, para
conseguir água e comida. Mesmo em situação “normal” um palestino não
pode mover-se livremente em sua própria cidade. Ele é humilhado em
barreiras, quando não é proibido de trabalhar e prover seu sustento.
Some-se a isso o fato de que Israel emprega táticas que podem ser
consideradas de terrorismo de Estado.
Veja – O senhor está dizendo que não existem terroristas na Palestina?
Said – Estou dizendo que sou contra todos os tipos de terrorismo, e
não somente contra aqueles de que os americanos não gostam. Para
conversar a sério, temos de reconhecer que Ariel Sharon é um
terrorista que mata mais gente do que qualquer garoto de 18 anos que
se explode com uma bomba. Estou dizendo, também, que não podemos
confundir causas e conseqüências. Se os jovens palestinos acabam nas
garras de ideologias políticas e religiosas que professam a
violência, é porque antes disso se afundaram no niilismo e no
desespero, porque tiveram de atirar pedras contra tanques. Eu odeio
os atentados suicidas. Eles são contra a vida, e é disso, de vida,
que os rapazes que as usam precisam na verdade.
Veja – O senhor se opõe sistematicamente à mediação dos Estados
Unidos na questão Israel-Palestina. Por quê?
Said – Os EUA são um império e agem, como qualquer império, buscando
consolidar e ampliar seu poder. Não é uma questão de decisões
individuais, não se trata dos desejos de um único presidente, seja
ele Bush, Carter ou Roosevelt. Apesar das diferenças de estilo e
abordagem, todos agem essencialmente da mesma maneira quando se trata
do Oriente Médio. Pois essa é uma região de enorme importância
estratégica – talvez a região mais importante do mundo nesse sentido.
Há 250 anos a luta pelo seu controle é contínua. O cinturão que vai
do Golfo Pérsico ao norte do Mar Cáspio é vital para o planejamento
americano – ou de qualquer país de pretensões imperiais. Assim, tudo
que tenha a aparência de um movimento por independência e
autodeterminação nessa região contará com a oposição deles. O aliado
privilegiado dos americanos na região é Israel. Eles encaram essa
nação como um posto avançado do Ocidente. É tolice esperar que um
plano de paz que responda aos interesses palestinos saia da cabeça de
um político americano.
Veja – O senhor costuma comparar os palestinos e os negros sul-
africanos. Diz que estes tiveram sucesso em sua luta contra o
apartheid porque conseguiram capturar a imaginação do mundo em favor
de sua causa. Por que os palestinos falharam nessa tarefa?
Said – Para começar, porque nunca tivemos um porta-voz com o carisma
e a credibilidade de um Nelson Mandela, e isso faz falta. Em segundo
lugar, as dificuldades que enfrentamos são muito maiores que as dos
libertadores da África do Sul. Eles se opunham a colonos brancos cujo
apoio fora de seu próprio território nunca foi significativo. Nosso
embate, por outro lado, é com os judeus da Europa, um povo trágico
que chegou ao Oriente Médio carregando o velho fardo do anti-
semitismo e um crédito moral em relação ao Ocidente, empenhado em
compensá-los depois da barbárie que foi o holocausto. Nós somos
vítimas das vítimas, e essa é uma posição muito difícil. Um terceiro
ponto é que, ao contrário dos sul-africanos, que nunca foram traídos
por seus vizinhos, nós nunca tivemos aliados reais em nossa região.
Os outros árabes nunca mantiveram sua lealdade até o fim. Finalmente,
somos incapazes de lidar com os Estados Unidos com qualquer sutileza.
Agimos sempre de maneira ignorante. Basta dizer que Abu Mazen e
Arafat falam mal o inglês. Comunicar-se de maneira adequada é de
extrema importância.
Veja – Uma Palestina independente interessa aos países árabes
vizinhos?
Said – Para responder a essa pergunta é preciso distinguir entre os
líderes e a população em geral. As lideranças árabes nada mais têm
feito do que usar a questão palestina de maneira oportunista, como
uma bandeira conveniente. No fundo, vêem uma Palestina independente
como uma ameaça à estabilidade de seus regimes. Se fazem isso,
contudo, é porque a causa tem força. A luta palestina tem a ver com
democracia e é um símbolo poderoso. Os palestinos têm sido uma gente
obcecada por eleições e parlamentos, por criar instituições
representativas que consigam se manter sob as condições mais
precárias. Lembre-se: apesar de tudo, Arafat ainda é um líder eleito.
O debate sobre a Autoridade Nacional Palestina e sobre o poder de
Arafat está sempre aberto, até as crianças participam dele. Esse
debate galvaniza os árabes e tem educado as pessoas sobre as
realidades da democracia e da tirania.
Veja – Até que ponto as instituições da sociedade civil estão
organizadas no mundo árabe?
Said – Há muita ignorância e distorção sobre o mundo árabe. Dizem,
por exemplo, que os árabes não têm a mais vaga idéia do que seja
democracia, que eles abraçam uma cultura da violência, que desistiram
de manifestar-se sob regimes que os controlam ferreamente. Tudo isso
é um acúmulo de tolices. Comecemos por uma das instituições-chave da
sociedade civil, a imprensa. Pois eu diria que em alguns sentidos as
idéias circulam de maneira mais ampla no Oriente Médio, inclusive em
países com censura forte como o Egito e a Jordânia, do que nos
Estados Unidos. Você pode, se quiser, comprar um jornal do Partido
Comunista numa esquina de Amã ou no Cairo – e isso é absolutamente
impossível nos Estados Unidos. Todo tipo de opinião é transmitido por
satélite. Veja o caso da rede de televisão Al Jazira. Ali falam
liberais e maoístas, islâmicos e antiislâmicos, gente de todas as
frentes. Isso não acontece na CNN ou na Fox News. Em segundo lugar,
os regimes linha-dura se mantêm num estado de tensão constante com
movimentos de direitos civis, movimentos femininos, ONGs e
instituições representativas dos mais diversos tipos. A propaganda
faz os árabes parecerem todos selvagens e atrasados, mas isso é
mentira. Compor uma representação mais refinada do que seja o mundo
árabe é uma tarefa urgente para os ocidentais.
Veja – O senhor não gosta da expressão “choque de civilizações”. Por
quê?
Said – Essa expressão foi posta para circular pelo cientista político
americano Samuel Huntington, apoiando-se num artigo de Bernard Lewis,
especialista no Oriente Médio famoso por seu menosprezo pelas pessoas
que lá vivem. São inúmeros os seus problemas. Para começar, ela trata
as civilizações como se fossem entidades fechadas, lacradas, alheias
a qualquer tipo de troca. E isso é tudo o que as civilizações não
são, pois elas se forjam na inter-relação e na fertilização mútua. Em
segundo lugar, a imagem que Huntington faz das civilizações encobre o
fato de que elas não são internamente monolíticas – que também estão
crivadas de contradições, de correntes e contracorrentes que as
animam. Por fim, a idéia de choque de civilizações tem um aspecto
caricatural muito nocivo, como se enormes entidades
chamadas “Ocidente” e “Islã” estivessem num ringue, lutando para ver
qual é a melhor. Essa imagem das civilizações exibindo seus músculos
uma para a outra como Brutus e Popeye no desenho animado é de uma
infantilidade atroz.
(Veja – Edição 1808 . 25 de junho de 2003)