
A discriminação dos árabes dentro de Israel agravou-se, diz o deputado e filósofo Azmi Bishara. Menos fundos, menos projectos, mais desemprego. Em tempos de crise, o Estado judaico lidará sempre com eles como se fossem inimigos e não cidadãos. Por Alexandra Lucas Coelho, Jerusalém
Quase um quinto dos cidadãos de Israel – mais de um milhão – são árabes. Os palestinianos que ficaram em 1948, quando o Estado judaico foi criado. Azmi Bishara é o seu rosto mais conhecido. Líder do partido Balad, deputado no Knesset (Parlamento), doutorado em filosofia na Alemanha, colunista regular da imprensa árabe e internacional. Azmi Bishara, 49 anos, nascido em Nazaré, defende que a raiz da discriminação está na definição de Israel como Estado judaico.Como se define como cidadão? Quando tenho que preencher um formulário em que me perguntam o Estado, escrevo Israel. Em termos de identidade nacional sou um palestiniano árabe. Quais são as palavras do juramento que tem que fazer como deputado do Knesset?As palavras são ditas por alguém e nós só temos que dizer: “Juro.” É algo como: “Jura lealdade ao Estado de Israel e às suas leis?”E o que significa isso para isso? A que tem de ser leal?Acredito que a lealdade ao Estado é a lealdade às leis. A lealdade ao Estado, em si, como entidade, é uma ideia fascista. Somos leais a valores humanos, a amizades, a sociedades, não a Estados. Mas o dever de não infringir as leis é algo mínimo a que um membro do Parlamento está obrigado. Desde que possamos lutar contra as leis. A minha lealdade às leis do Estado não inclui o meu direito a estar contra leis que me parecem injustas. Estarei contra qualquer lei que descrimine os árabes, que anexe terra árabe, que use o Estado como uma ferramenta para beneficiar os judeus, como a Lei de Retorno [que permite a qualquer judeu do mundo vir para Israel, tornando-se automaticamente cidadão]. Digo explicitamente que estou contra ela.O seu compromisso é com a regra da lei.Sim, na atitude. Não vou pegar em armas contra o Estado. Vou lutar legalmente contra determinadas leis. Entra-se no Parlamento para trabalho político e não para luta armada. No começo da segunda Intifada, em 2000, muitos árabes israelitas protestaram contra Israel, 13 foram mortos a tiro, num processo que ainda hoje é uma ferida, sem qualquer polícia ter sido incriminado. Agora em Nazaré é difícil encontrar quem não se defina como palestiniano. Esta Intifada marca uma mudança, fez mais gente definir-se como palestiniana?Em todo o mundo, as pessoas mudam a expressão da sua identidade. Pergunte-se aos americanos, antes e depois do 11 de Setembro. Em Israel, em fases diferentes do país, houve acentuações distintas entre israelita judeu, judeu israelita, o que vem antes, etc. Da mesma forma, há altos e baixos na componente palestiniana da identidade nacional, mas ela nunca desaparece. A componente israelita existe no estatuto cívico das pessoas. Quando esse estatuto é sublinhado, quando há mais ilusões em relação aos direitos civis no país, a componente israelita aumenta na identidade. Mas há factos históricos e elementos de que as pessoas não se libertam. Por exemplo, o facto de os seus pais, os seus avós serem palestinianos. É um facto. Antes de 1948 não havia Israel. Este estatuto cívico israelita é novo. De onde veio? Da Naqba [a Catástrofe, quando centenas de milhares de palestinianos fugiram ou foram expulsos das suas casas]. De os árabes, que eram a maioria [na Palestina histórica], se terem tornado a minoria [em Israel]. Então a questão da identidade fica em aberto: quem são eles?, o que são eles?Penso que essa questão está directamente ligada à questão palestiniana. É por haver a questão palestiniana que há uma minoria árabe em Israel – a maioria passou a ser de refugiados. A ideologia oficial do país dizia que não havia povo palestiniano. E a tendência foi para os definir em religiões, em tribos.É isso que ainda acontece oficialmente: os árabes israelitas são divididos em muçulmanos, cristãos, drusos, etc. Não é mencionado o termo palestiniano.Claro que não. Chamam-lhes minorias, e não minoria. São cidadãos do Estado de Israel. Se Israel tendesse a tornar a cidadania em identidade era mais fácil. Eram israelitas. Mas para Israel não há israelitas, há judeus ou não judeus. A afinidade, o que distingue, é ser-se judeu, mesmo que não se seja israelita. O colectivo sobre o qual o país está construído é o judeu. Em Portugal é o português, em França é o francês, em Israel é o judeu, não israelita.Isto é fundamental porque abre a questão da crise de identidade.Agora, em momentos de confronto há de facto um aumento na consciência nacional dos palestinianos. Na primeira Intifada houve um aumento, e depois um declínio por volta de Oslo [1993], quando os árabes queriam ser parte do processo de igualdade…Houve esforços do Governo de Ytzhak Rabin nesse sentido, que as pessoas reconhecem.Houve esforços, mas o Estado de Israel continuou a ser um Estado judeu. A discriminação continuou em todas as esferas da vida. Houve uma ilusão de que o país teria chegado a uma suposta era pós-sionista depois de Rabin. E depois tudo colapsou com o assassinato de Rabin [1995], os governos de Benjamin Netanyahu [1996-1999] e Ehud Barak [1999-2000]. Toda essa ilusão se revelou como ilusão. Enquanto o Estado de Israel destacar a sua natureza judaica, sionista, não é possível falar de um verdadeiro, sólido, processo de igualdade [entre judeus e árabes em Israel]. Andará sempre aos altos e baixos, e em tempos de crise Israel ficará mais judeu e os árabes ficarão mais árabes em toda a parte, e Israel lidará com os palestinianos como se fossem inimigos e não cidadãos, como aconteceu no princípio desta Intifada. Muita gente fala da repressão policial de 2000, das 13 mortes como um momento de choque. A descoberta de que não eram verdadeiros cidadãos. É muito importante, claro, sou uma das pessoas acusadas de ter organizado os protestos. Foi muito significativo e construiu-se muito sobre isso, um levantamento da consciência das pessoas, politicamente. Mas não foi a primeira vez que as pessoas protestaram contra o Estado e não foi a primeira vez que a polícia abriu fogo. Em tempos de guerra, de crise política, os árabes em Israel são tratados como uma “quinta coluna”, como o inimigo. Muitas pessoas dirão que os acontecimentos de 2000 as desiludiram. Outras dirão que vieram para a rua quando já estavam desiludidas com as políticas discriminatórias de Barak. O importante para mim em 2000 é que as pessoas vieram para rua por causa da questão palestiniana. O elemento espontâneo foi maior que o organizado. E depois, o governo era trabalhista e não Likud. Ou seja, um primeiro-ministro no qual eles tinham votado e sobre o qual tinham ilusões. Barak, em nome de quem o senhor desistiu de se candidatar [para concentrar votos e impedir uma vitória de Netanyahu].Sim. A questão é que em governos trabalhistas há um esforço da polícia, mais ainda que nos governos Likud, de serem brutais com os árabes. Todos os casos que temos de árabes mortos a tiros são durante governos trabalhistas. Há uma tendência em mostrar ao público judeu que quando se trata de questões políticas nacionais são mais mais duros, não fazem concessões. Barak deu ordens muito claras para que as ruas fossem abertas e eles dispararam em todas as direcções. Depois disso, vimos outra vez um declínio na consciência árabe. Por causa da perda de elementos nacionalistas no mundo árabe, da tentativa internacional de aceitar Sharon, especialmente depois do 11 de Setembro. E agora novamente há um desespero.No fim de tudo, a fonte do que aconteceu em 2000 continua a existir, a discriminação, a violência, o racismo, um Estado que se vê essencialmente como um Estado de judeus e não de todos os seus cidadãos. Desde 2000, ou seja, no governo de Sharon, que avaliação faz em relação a novas leis, orçamentos para as populações árabes, etc?Em todos os aspectos da vida houve um agravamento da discriminação. Que se tornou pior por este ser também um governo de austeridade, de cortes nos orçamentos. E os cortes afectam, geralmente, as faixas mais fracas e pobres da população, que são sobretudo árabes. Menos construção, menos projectos, mais desemprego. As povoações árabes já não têm agricultura porque a terra foi confiscada. E não se tornaram burguesas, têm assalariados. Em algumas há 30/40 por cento de desemprego. Amanhã Reportagem na Galileia, com os palestinianos de Israel
Público 21OUT2005
FIM
Público 21OUT2005
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