
Cena um: o escritor chinês Bei Dao conta que, quando se apresentou ao consulado israelense, em San Francisco, onde mora, para pedir um visto para viajar para a Palestina, o funcionário disse com um ar “blasé”: “Esse país não existe”.
Cena dois: o nigeriano Woyle Soyinka, prêmio Nobel de Literatura de 1986, explica, dentro do ônibus, numa entrevista ao telefone, que a visita à Palestina de membros do Parlamento Internacional dos Escritores não tem nenhuma conotação anti-semita. Foi motivada pela impossibilidade de Mahmoud Darwish, o maior poeta palestino, de se ausentar de sua terra para um encontro com seus colegas escritores que resolvem ver in loco o que se passa na Palestina.
Cena três: o escritor português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura de 1998, fala para a câmara dentro de um ônibus. Ele tenta explicar o significado de suas palavras, que correram o mundo, quando, no início dessa viagem, comparou campos de refugiados palestinos com Auschwitz. Saramago diz que não poderia calar sobre o que viu.
Cena quatro: o poeta Mahmoud Darwish lê seu belo texto -“sofremos de um mal incurável que se chama esperança”- diante de um público ávido por poesia, num teatro lotado de Ramalah. Poucos dias depois, diz a voz em “off”, o prédio do teatro foi arrasado pelos tanques israelenses.
Cena cinco: um homem com uma serra elétrica se aproxima de um pequeno campo de oliveiras. O homem está protegido por homens armados. O dono do campo, um palestino de pouco mais de 30 anos, chora e diz que os israelenses estão destruindo tudo o que ele possui. Ele conta que no seu campo passará “o muro” que Israel está construindo para isolar as aldeias da Cisjordânia. A ocupação é assim: feita de pequenos incidentes. O palestino que chora ao ver seu campo de olivas destruído não tem como reagir nem a quem reclamar indenização.
Essas cinco cenas não são vistas nessa ordem nem obedecem a nenhuma hierarquia. Simplesmente, são cenas emblemáticas de um documentário -“Écrivains des frontières” (Escritores das fronteiras)-, sobre a viagem à Palestina de um grupo de autores representando todos os continentes. O americano Russell Banks, presidente do Parlamento Internacional dos Escritores, criado em 1993, chefiava o grupo. Ele diz que a visita a Arafat, mostrada no filme, poderia parecer aos olhos de alguns como “um bando de Jane Fonda indo visitar Ho Chi Minh”. Mesmo assim, os escritores tiveram coragem de enfrentar as críticas e foram ao encontro líder palestino excluído politicamente por Bush e Sharon.
Os textos dos escritores, que servem de base narrativa à maioria das imagens, foram publicados com o título “Le Voyage en Palestine”. O filósofo Jacques Derrida, que não foi por problemas de saúde, mandou uma mensagem, publicada no final do livro.
Diversos estilos e sensibilidades se somam para analisar o mesmo problema sob diferentes óticas, em português, italiano, espanhol, inglês, chinês e francês. As imagens tentam estar à altura da qualidade dos textos lidos pelos autores na própria língua.
Breyten Breytenbach fez uma carta aberta a Ariel Sharon. Para falar do problema palestino, Wole Soyinka vai à Grécia antiga buscar uma metáfora na Odisséia, no episódio de Ulisses na Ilha de Polifemo. O escritor francês Christian Salmon descreve uma paisagem cujas estradas, campos e oliveiras pertencem ao patrimônio da humanidade. Ele diz: “Konwicki, o escritor polonês, dizia a propósito de seu país: minha pátria tem patins; suas fronteiras se movem na onda dos tratados. Na Palestina, é pior. A fronteira se move como uma nuvem de gafanhotos”.
A sensibilidade dos dois cineastas na edição das imagens foi decisiva para sublinhar a força dos textos que fazem dos oito escritores co-autores do filme. Nada é supérfluo nem redundante. Algumas imagens são duras, secas, como a geografia ambiente. Gaza é uma desolação. Uma faixa de terra superpovoada, onde 1 milhão e 200 mil palestinos se amontoam em 60% do território. Os 6.000 colonos israelenses controlam os outros 40% das terras destinadas às colônias e às bases militares. Em cada quatro habitantes de Gaza, três são refugiados, expulsos de alguma aldeia da Palestina em 1948 pelos israelenses. O escritor Wole Soyinka escreveu: “Vimos em toda sua crueza a política ativa de usurpação do território pelos colonos”.
Sem maniqueísmo, o filme mostra monstros sagrados da literatura mundial visitando Ramalah, Gaza e depois Israel. Eles entram nas casas palestinas semi-destruídas por bombas. Encontram-se com intelectuais palestinos e com intelectuais de Israel. O encontro com Yasser Arafat antes do ataque israelense ao seu quartel-general, foi aceito por todos não como um apoio a Arafat, mas pelo símbolo de um povo que há 50 anos luta por um Estado independente.
Os escritores visitam Bir Zeit, a mais importante universidade palestina, onde a rotina dos alunos e professores é infernal: para chegar ao campus, eles têm de passar por estradas controladas pelo exército israelense, por diversos “check points” e percorrer uma parte do caminho a pé. “O governo de Israel faz tudo para tornar nossa vida um inferno”, diz um palestino.
“Esta ocupação é uma ocupação estrangeira que não pode escapar à acepção universal da palavra ocupação, qualquer que seja o número de títulos de direitos divinos que ela invoca; Deus não é propriedade pessoal de ninguém.” Mahmoud Darwish lê seu texto com a serenidade de quem não perdeu a esperança.
No encontro com escritores e intelectuais israelenses, já em território de Israel, os escritores ouviram relatos de militantes da paz que vêem a situação se degradar a cada dia, a esquerda perder terreno e as esperanças de um acordo de paz ficar cada vez mais distante. Uma editora israelense toma a palavra e diz que não se pode fazer uma simetria entre o sofrimento dos israelenses e o dos palestinos. Emocionada, ela diz que não suporta “ouvir falar de compreensão com o sofrimento dos dois povos, como se pudesse haver comparação entre quem oprime e quem sofre a opressão”. Seu combate é denunciar a ocupação e a opressão sofrida pelo povo palestino.
Depois de percorrer o território palestino ocupado, de ver a destruição de casas e campos, de perceber de longe as colônias israelenses dentro do território da Cisjordânia e de Gaza, de ouvir palestinos perplexos, mulheres e homens que encontram por acaso nas estradas e nos locais que visitam, os escritores estão prontos para voltarem a seus países e escrever o que viram.
Dois dias depois de deixarem Israel-Palestina, o teatro em que estiveram foi totalmente destruído e o quartel-general de Arafat foi atacado por ordem de Sharon. O líder palestino é um prisioneiro virtual de Ariel Sharon em Ramalah.
“Écrivains des frontières”: Documentário de Samir Abdallah e José Reynès, duração de 80 min. Em exibição em Paris. Abdallah e Reynès acompanharam a viagem de oito escritores à Palestina em março de 2002: Russell Banks, Breyten Breytenbach, Vincenzo Consolo, Bei Dao, Juan Goytisolo, Christian Salmon, José Saramago e Wole Soyinka.
Leneide Duarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.