
Edward Said Assim a paz não virá
Assim a paz não virá Entrevista de Edward Said em 23/06/2003 Edward Saidnasceu em 1935, em Jerusalém. Em 1948, juntamente com a sua família, foi obrigado a deixar a Palestina. Said estudou e viveu no Egito e nos Estados Unidos, onde se formou na Universidade de Princeton e foi professor de literatura inglesa na Universidade de Columbia, em Nova York. Duas coletâneas recém-lançadas no Brasil oferecem um panorama de seu pensamento:Cultura e Política, Boitempo eReflexões sobre o Exílio, Companhia das Letras. Edward Said militou incansavelmente pela causa palestina. Faleceu em 24 de setembro de 2003.
Pergunta — O plano de paz firmado entre as lideranças palestina e israelense o deixou otimista? Edwar Said — Não, nem um pouco. A única fonte de otimismo, a meu ver, continua sendo a coragem dos palestinos para resistir. Foi por causa da Intifada e porque os palestinos se recusaram a capitular diante dos israelitas que chegamos à mesa de negociação — e não apesar de tudo isso, como alguns insistem em dizer. O povo palestino vai continuar se opondo aos assentamentos ilegais, ao exército de ocupação, aos esforços políticos para pôr um ponto final em sua aspiração legítima de ter um Estado. A sociedade palestina vai subsistir, apesar de todos os esforços que têm sido feitos para sufocá-la. Pergunta — Não há futuro, então, para o plano de paz da maneira como ele foi traçado? Edwar Said — Esse plano não aborda os problemas e as reivindicações reais do povo palestino. Estamos falando de uma nação que foi destruída há mais de cinqüenta anos. Sua população foi privada de suas propriedades, 70% dela ficou desabrigada. Ainda hoje, quatro milhões de palestinos vivem refugiados no Oriente Médio e em outras regiões do mundo. Desde 1948 a ONU reafirma a ilegalidade dessa situação e diz que essas pessoas deveriam ser indenizadas ou repatriadas. O plano de paz, no entanto, não toca nesse ponto. O plano também não diz nada sobre a ocupação militar que começou em 1967. Estamos falando da mais longa ocupação militar da história moderna. Milhares de casas foram destruídas e, em seu lugar, surgiram quase 2 000 assentamentos israelitas habitados por cerca de 200 000 colonos. A seção leste de Jerusalém foi indevidamente anexada por Israel, que, além disso, nos últimos dois anos e meio, manteve os três milhões de habitantes da Faixa de Gaza e da Cisjordânia sob toque de recolher e restrições de direitos humilhantes. Nada disso é mencionado pelo plano de paz. E tampouco a questão das fronteiras de um futuro Estado palestino é abordada com clareza. Não há menção às fronteiras que existiam antes de 1967, muito menos à idéia de restabelecê-las. Ou seja, Israel se propõe a reconhecer um Estado palestino — mas provisório e sem território estabelecido. Na essência, tudo que o plano diz é que os palestinos devem abrir mão da Resistência, parar de lutar. Em contrapartida, Israel eventualmente levantaria algumas das restrições que impõe ao povo palestino — mas isso é dito sem maiores especificações. O plano não prevê mecanismos efetivos de implementação de suas fases. Assim como ocorreu nas negociações de Oslo, em 1993, as decisões ficariam a cargo dos israelitas. Em resumo, estamos falando de um plano que não leva a lugar algum. Pergunta — Qual seria a alternativa? Edwar Said — O único ponto de partida realista consiste em fortalecer as instituições democráticas palestinas e israelitas para que novas lideranças surjam. Não sei quais seriam os nomes israelitas — do lado deles, meu conhecimento se limita a gente da universidade e do meio artístico. Mas entre os palestinos há diversas figuras políticas de talento e força popular que ainda não assumiram papéis que façam plena justiça a suas potencialidades. Pergunta — Durante muito tempo o senhor colaborou com Arafat. Quando se desiludiu com ele? Edwar Said — Arafat cometeu uma série de erros políticos muito graves. O pior de todos foi apoiar o Iraque quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait. Para manter-se no poder depois daquilo, ele assumiu uma série de compromissos desastrosos com os Estados Unidos e com Israel, culminando no acordo de Oslo, em 1993 — na minha opinião, uma vergonhosa capitulação da parte dele. Nesse momento, Arafat já havia deixado de pensar no povo que representava e preocupava-se apenas com sua própria sobrevivência política. No começo dos anos 90, Arafat devia ter simplesmente saído de cena. Em vez disso, mentiu para o povo e para si próprio, dizendo que havia finalmente lançado as bases para o surgimento de um Estado palestino independente. Dali em diante as coisas só pioraram. Ele criou um regime corrupto e brutal na Cisjordânia e desqualificou-se totalmente como líder. Arafat está acabado. Pergunta — O novo primeiro-ministro palestino, Abu Mazen, foi o nome certo para substituir Arafat nas negociações de paz? Edwar Said — De maneira nenhuma. Ele é um pobre clone de Arafat. Conheço-o desde os anos 70, ainda que não de maneira muito próxima. Estamos falando de um burocrata eficiente, mas desprovido de qualquer apoio popular significativo. Ele depende de Arafat para agir, digam o que disserem em sentido contrário. Abu Mazen não é um líder, ele é um eterno número dois. Mais importante que isso, ele não tem espírito combativo. Desde Oslo, tem se mostrado muito ansioso para fazer concessões aos Estados Unidos e a Israel. Capitulou em tudo que poderia capitular e caminha numa estrada sem saída. Como muita gente que se educou na mentalidade colonial, ele acredita que a salvação está nas mãos do homem branco ocidental. Mas não é lendo discursos escritos por um assistente de Donald Rumsfeld que vamos chegar lá. Bush não é a solução de nossos problemas — e muito menos Ariel Sharon. Pergunta — Abu Mazen tem força para conter as organizações terroristas sediadas na Palestina, como pedem os acordos de paz? Edwar Said — Abu Mazen tem força para pouca coisa. Dito isso, sempre hesito muito em discutir a questão do terrorismo, porque o tema é sempre abordado num vácuo de referências históricas e políticas. Os palestinos, repito, foram privados de sua terra há mais de cinqüenta anos, foram submetidos a uma pesada ocupação militar, e viram seu cotidiano transformado num inferno. Já houve estados de sítio decretados por Israel que duraram 89 dias. Nesses períodos, as pessoas só podiam sair de casa umas poucas horas por dia, para conseguir água e comida. Mesmo em situação “normal” um palestino não pode mover-se livremente em sua própria cidade. Ele é humilhado em barreiras, quando não é proibido de trabalhar e prover seu sustento. Some-se a isso o fato de que Israel emprega táticas que podem ser consideradas de terrorismo de Estado. Pergunta — O senhor está dizendo que não existem terroristas na Palestina? Edwar Said — Estou dizendo que sou contra todos os tipos de terrorismo, e não somente contra aqueles de que os americanos não gostam. Para conversar a sério, temos de reconhecer que Ariel Sharon é um terrorista que mata mais gente do que qualquer garoto de 18 anos que se explode com uma bomba. Estou dizendo, também, que não podemos confundir causas e conseqüências. Se os jovens palestinos acabam nas garras de ideologias políticas e religiosas que professam a violência, é porque antes disso se afundaram no niilismo e no desespero, porque tiveram de atirar pedras contra tanques. Eu odeio os atentados suicidas. Eles são contra a vida, e é disso, de vida, que os rapazes que as usam precisam na verdade. Pergunta — O senhor se opõe sistematicamente à mediação dos Estados Unidos na questão Israel-Palestina. Por quê? Edwar Said — Os EUA são um império e agem, como qualquer império, buscando consolidar e ampliar seu poder. Não é uma questão de decisões individuais, não se trata dos desejos de um único presidente, seja ele Bush, Carter ou Roosevelt. Apesar das diferenças de estilo e abordagem, todos agem essencialmente da mesma maneira quando se trata do Oriente Médio. Pois essa é uma região de enorme importância estratégica — talvez a região mais importante do mundo nesse sentido. Há 250 anos a luta pelo seu controle é contínua. O cinturão que vai do Golfo Pérsico ao norte do Mar Cáspio é vital para o planejamento americano — ou de qualquer país de pretensões imperiais. Assim, tudo que tenha a aparência de um movimento por independência e autodeterminação nessa região contará com a oposição deles. O aliado privilegiado dos americanos na região é Israel. Eles encaram essa nação como um posto avançado do Ocidente. É tolice esperar que um plano de paz que responda aos interesses palestinos saia da cabeça de um político americano. Pergunta — O senhor costuma comparar os palestinos e os negros sul-africanos. Diz que estes tiveram sucesso em sua luta contra o apartheid porque conseguiram capturar a imaginação do mundo em favor de sua causa. Por que os palestinos falharam nessa tarefa? Edwar Said — Para começar, porque nunca tivemos um porta-voz com o carisma e a credibilidade de um Nelson Mandela, e isso faz falta. Em segundo lugar, as dificuldades que enfrentamos são muito maiores que as dos libertadores da África do Sul. Eles se opunham a colonos brancos cujo apoio fora de seu próprio território nunca foi significativo. Nosso embate, por outro lado, é com os judeus da Europa, um povo trágico que chegou ao Oriente Médio carregando o velho fardo do anti-semitismo e um crédito moral em relação ao Ocidente, empenhado em compensá-los depois do holocausto. Nós somos vítimas das vítimas, e essa é uma posição muito difícil. Um terceiro ponto é que, ao contrário dos sul-africanos, que nunca foram traídos por seus vizinhos, nós nunca tivemos aliados reais em nossa região. Os outros árabes nunca mantiveram sua lealdade até o fim. Finalmente, somos incapazes de lidar com os Estados Unidos com qualquer sutileza. Agimos sempre de maneira ignorante. Basta dizer que Abu Mazen e Arafat falam mal o inglês. Comunicar-se de maneira adequada é de extrema importância. Pergunta — Uma Palestina independente interessa aos países árabes vizinhos? Edwar Said — Para responder a essa pergunta é preciso distinguir entre os líderes e a população em geral. As lideranças árabes nada mais têm feito do que usar a questão palestina de maneira oportunista, como uma bandeira conveniente. No fundo, vêem uma Palestina independente como uma ameaça à estabilidade de seus regimes. Se fazem isso, contudo, é porque a causa tem força. A luta palestina tem a ver com democracia e é um símbolo poderoso. Os palestinos têm sido uma gente obcecada por eleições e parlamentos, por criar instituições representativas que consigam se manter sob as condições mais precárias. Lembre-se: apesar de tudo, Arafat ainda é um líder eleito. O debate sobre a Autoridade Nacional Palestina e sobre o poder de Arafat está sempre aberto, até as crianças participam dele. Esse debate galvaniza os árabes e tem educado as pessoas sobre as realidades da democracia e da tirania. Pergunta — Até que ponto as instituições da sociedade civil estão organizadas no mundo árabe? Edwar Said — Há muita ignorância e distorção sobre o mundo árabe. Dizem, por exemplo, que os árabes não têm a mais vaga idéia do que seja democracia, que eles abraçam uma cultura da violência, que desistiram de manifestar-se sob regimes que os controlam ferreamente. Tudo isso é um acúmulo de tolices. Comecemos por uma das instituições-chave da sociedade civil, a imprensa. Pois eu diria que em alguns sentidos as idéias circulam de maneira mais ampla no Oriente Médio, inclusive em países com censura forte como o Egito e a Jordânia, do que nos Estados Unidos. Você pode, se quiser, comprar um jornal do Partido Comunista numa esquina de Amã ou no Cairo — e isso é absolutamente impossível nos Estados Unidos. Todo tipo de opinião é transmitido por satélite. Veja o caso da rede de televisão Al Jazira. Ali falam liberais e maoístas, islâmicos e antiislâmicos, gente de todas as frentes. Isso não acontece na CNN ou na Fox News. Em segundo lugar, os regimes linha-dura se mantêm num estado de tensão constante com movimentos de direitos civis, movimentos femininos, ONGs e instituições representativas dos mais diversos tipos. A propaganda faz os árabes parecerem todos selvagens e atrasados, mas isso é mentira. Compor uma representação mais refinada do que seja o mundo árabe é uma tarefa urgente para os ocidentais. Pergunta — O senhor não gosta da expressão “choque de civilizações”. Por quê? Edwar Said — Essa expressão foi posta para circular pelo cientista político americano Samuel Huntington, apoiando-se num artigo de Bernard Lewis, especialista no Oriente Médio famoso por seu menosprezo pelas pessoas que lá vivem. São inúmeros os seus problemas. Para começar, ela trata as civilizações como se fossem entidades fechadas, lacradas, alheias a qualquer tipo de troca. E isso é tudo o que as civilizações não são, pois elas se forjam na inter-relação e na fertilização mútua. Em segundo lugar, a imagem que Huntington faz das civilizações encobre o fato de que elas não são internamente monolíticas, e que também estão crivadas de contradições, de correntes e contracorrentes que as animam. Por fim, a idéia de choque de civilizações tem um aspecto caricatural muito nocivo, como se enormes entidades chamadas “Ocidente” e “Islã” estivessem num ringue, lutando para ver qual é a melhor. Essa imagem das civilizações exibindo seus músculos uma para a outra como Brutus e Popeye no desenho animado é de uma infantilidade atroz. |