
A favor dos palestinos, contra o maniqueísmo!
Antonio Ozaí da Silva*
“A análise verdadeiramente intelectual proíbe chamar um dos lados de inocente, e o outro, de perverso”
(Edward W. Said)
“Os sionistas e o Ocidente pretendiam resolver na Palestina um problema cuja origem não estava no mundo árabe. Na realidade, não fizeram mais que criar um novo problema, uma grande injustiça: a questão palestina. Na sua própria terra, os palestinos transformaram-se nos “novos judeus” da nossa era”
(Helena Salem, 1977, p.132).
As posturas maniqueístas opõem o mal ao bem, os bandidos aos mocinhos, como num filme hollywoodiano ou numa dessas novelas mal-dubladas e ‘globais’. A ideologização das interpretações, a favor ou contra um dos lados, é, no entanto, comum. E, na verdade, aos que tem consciência da realidade, é fatal a exigência do posicionamento político e ideológico. A recusa aos simplismos maniqueístas não nos isenta de tomar posição. Não nos iludamos: o ‘silêncio’, a ‘neutralidade’, o ‘não tenho nada a ver com isso’, também são posicionamentos políticos e têm conseqüências.
É impossível não se sensibilizar com o drama vivido cotidianamente pelos palestinos. Há muito, as imagens mostram enfaticamente os horrores a que são submetidos mulheres e homens de todas as idades. O Estado de Israel, em nome da política de segurança, expulsa os moradores, reduz suas moradias a escombros e destrói suas plantações de oliveiras. Assim, estrangula economicamente o povo palestino. Com a construção do “muro da vergonha”, isola vilarejos e cidades, segrega famílias e retira-lhes a possibilidade de sustento; massacra civis, dá cobertura à violência sem limites dos colonos religiosos, fanáticos de extrema-direita que ocupam o território reconhecidamente palestino, e tudo fazem para atemorizar e expulsá-los de suas residências.
O recente conflito na Faixa de Gaza, com a ocupação das forças militares israelenses, é a continuidade desse círculo infernal de violência e massacre de civis, mas com maior intensidade. É a força da violência suplantando a razão e os melhores sentimentos humanos. O exército de Israel é uma força superior e se impõe. O Hamas, por sua vez, faz o discurso dos que precisam manter a luta em movimento. Para além dos argumentos de ambos os lados, o fato é que a violência é o combustível que alimenta ódios passados, presentes e futuros. É um tiro no pé! O militarismo israelense produz os futuros combatentes, jovens dispostos a tudo contra o inimigo. O que se pode esperar de crianças e jovens que vêem seus irmãos, irmãs, pais, mães e familiares serem mortos e violentados em sua humanidade? A violência produz a cultura da violência e nutre-se de si mesma. Ela incuba o gérmen do ódio mútuo entre os povos, que cresce e manifesta-se a cada geração. [1]
Por outro lado, os ataques do Hamas, ainda que desproporcional à capacidade de destruição dos militares israelense, também causam mortes e nutrem ódios recíprocos. Uma vida humana de uma criança ou adulto israelense importa tanto quanto a vida da criança palestina. Como alcançar a paz nessas circunstâncias?
É muito difícil ficar insensível às imagens que circulam na mídia e na Internet. O sofrimento e a dor dos pais diante da morte e da destruição dos seus lares e das suas vidas manifestam-se em suas faces e em seus gestos. Os argumentos israelenses, fundados na incessante repetição das necessidades impostas pela “política de segurança”, não são convincentes. [2] As imagens demonstram-no.
Israel age como o exército francês na “Batalha de Argel”. [3]. Como identificar os “terroristas”? Ora, partindo do pressuposto de que cada argelino era um ‘terrorista em potencial’ e, portanto, agir como se todos os argelinos fossem membros da Frente de Libertação Nacional (FLN). Israel adota a mesma postura e transforma todos os palestinos, independente da idade e sexo, em inimigos a serem combatidos e dizimados, como se todos fossem militantes do Hamas.
O militarismo favorece as forças favoráveis à manutenção da guerra, os extremistas e fanáticos de ambos os lados. O exército francês na Argélia desconsiderava que era uma força de ocupação. O que fazia ali? Por acaso deviam esperar que os argelinos aceitassem a dominação como uma dádiva da ‘civilização’ francesa? Deviam suportar pacificamente a presença dos franceses? Israel também atua como força de ocupação e, como tal, não pode esperar que os palestinos aceitem pacificamente sua presença e as dificuldades que impõem às suas vidas – sem falar na violência explícita.
A guerra real é também uma “guerra midiática”. Da mesma forma que temos acesso às imagens dantescas da destruição e morte, especialmente das crianças e jovens, também recebemos imagens que buscam criminalizar os judeus em geral, identificando-os com práticas nazistas. São montagens, cujas fontes nem sempre são identificadas, que produzem o equívoco de identificar o governo e as forças militares israelenses com o povo de Israel e os judeus em geral. Ainda que não seja intencional, isso pode contribui para alimentar o ódio e a intolerância anti-semita. É preciso ir além das fáceis identificações que homogeneízam os povos. O ‘povo judeu’, o ‘povo palestino’ não são homogêneos; da mesma forma, é necessário observar as diferenças existentes entre ‘palestinos’ e ‘árabes’. [4]
Há divergências entre os israelenses quanto à melhor estratégia para encontrar uma solução de paz; e há a luta aberta entre os partidários do Hamas [5] e o Al-Fatah [6]. A derrota do Hamas, que controla a Faixa de Gaza, é do interesse do Al-Fatah. O fato de o Hamas ter sido vitorioso nas eleições de 2006 [7], imediatamente boicotado pelas chamadas democracias ocidentais, numa clara e paradoxal demonstração antidemocrática [8], é mais um problema para Israel.
As autoridades israelenses e ocidentais preferem o Al-Fatah, ainda que enfraquecido internamente. O Hamas, porém, conquistou a legitimidade entre os palestinos e é um erro político desconsiderar este fato. A estratégia de isolamento do Hamas pode tê-lo fortalecido ainda mais, a despeito do preço pago com a perda da vida de milhares de palestinos. [9]
Ainda que o militarismo israelense tenha o respaldo da maioria dos eleitores, há resistências. Nem todos os judeus, dentro e fora de Israel, concordam com a política oficial. [10] A crítica ao belicismo israelense deve ter o cuidado de observar os riscos que tais identificações sugerem, enquanto generalizações desvinculadas dos seus respectivos contextos históricos. A complexidade da situação não suporta reducionismos maniqueístas.
Mesmo a maioria da sociedade israelense que apoiou a ação militar na Faixa de Gaza não está imune às imagens do terror e mortandade das crianças e da dor e sofrimento. Se o governo e os militares israelenses jogam a culpa no Hamas – que teria rompido a trégua –, o líder deste, Khaled Meshal, censura a impiedade dos generais inimigos e, do exílio em Damasco (Síria), proclama a vitória do seu grupo. Já o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, inculpa o próprio Hamas pela recusa em renovar o armistício. De quem é a culpa? Como bem observou Bernardo Kucinski: “Certamente a culpa não é das crianças e suas mães”. [11] Os israelenses que apoiaram a política do governo terão que se haver com as suas consciências. [12]
“Não é uma guerra, não há exércitos se enfrentando. É uma matança”, afirmaram José Saramago e outros intelectuais.[13] E, de fato, os números e as imagens evidenciam o caráter da “guerra”. A demonstração de força da máquina militar israelense, mais uma vez, destrói as frágeis pontes, porém necessárias, para o diálogo e a negociação. Israelenses e palestinos, por mais que se odeiem, terão que, em algum momento, dialogar. A solução militar, cada vez mais, mostra-se ineficiente. Israel não conquistará a segurança que precisa enquanto oprimir e colonizar a nacionalidade palestina; e estes não estarão livres dos horrores causados pelo poderio militar israelense enquanto não aceitarem a existência da nação israelense. O ideal seria um mundo sem fronteiras, mas os nacionalismos ainda são predominantes. Enquanto cada povo não tiver garantido o seu Estado, não haverá paz.
A realidade é muito mais complexa do que as afirmações simplistas e maniqueístas. A generalização favorece o maniqueísmo. Mesmo as análises que pretendem superá-lo não estão isentas do erro e, portanto, de serem criticadas. Na verdade, há argumentos disponíveis para todos os lados, a depender da posição político-ideológica. O dossiê publicado na REA, nº 93, fevereiro de 2009, é uma amostra dessa complexidade.
Mesmo nós, os que não estamos diretamente envolvidos, devemos nos pronunciar e, responsavelmente, assumir uma posição. Provavelmente isso não terá o menor efeito sobre os acontecimentos e o cotidiano dos diretamente envolvidos, mas eles saberão que não estamos cegos diante da barbárie. Quem tem olhos que veja. Talvez todos precisemos de um pouco mais de lucidez.
Já deveríamos ter aprendido com a história do século XX, para não voltarmos muito no tempo, que as posturas maniqueístas podem até nutrir ideologias e justificá-las, mas também podem alimentar o barbarismo e a desumanização. Os ‘nossos’ também cometem erros. Temos o direito de escolher um lado, ou mesmo de silenciarmos. Nossas opções, porém, não nos isenta da necessidade do olhar crítico e autocrítico.
O engajamento responsável pressupõe a superação da lógica, tão em voga na época da ‘guerra fria’, do “inimigo meu, inimigo teu” (também traduzida pelo silogismo “se és amigo do meu inimigo, és meu inimigo”). A verdade é que o “meu amigo” não está acima da crítica. Segui-lo cegamente é abdicar do pensar crítico, é aderir ao sectário e ao fanático, sejam eles religiosos ou seculares. As polaridades são insuficientes para entender e explicar o mundo real. Há mais entre o bem e o mal do que as vãs filosofias dos maniqueístas ousam pensar e admitir.